Perdi a conta dos dias que transcorreram desde que fugi dos horrores da fortaleza louca de Vasco Miranda, na aldeia de Benengeli, nas montanhas da Andaluzia; fugi da morte na escuridão da noite, deixando uma mensagem pregada na porta. E desde então, ao longo de meu caminho, junto com a fome e o calor, não têm faltado maços de folhas rabiscadas, e marteladas, e interjeições secas de pregos de duas polegadas. Há muito tempo, nos meus verdes anos, minha amada me disse num rompante amoroso: “Ah, meu mouro, meu negro, que homem mais estranho, tão cheio de teses, sem ter uma porta de igreja onde pregá-las”. (Ela, uma indiana confessadamente religiosa mas não cristã, fazia troça do protesto de Lutero em Wittenberg para zombar de seu amor, um indiano nem um pouco religioso, embora cristão: como as histórias se espalham, e em que bocas elas vão parar!) felizmente,
“Amrika” e “Moskva”, alguém as chamou uma vez, Aurora minha mãe e Uma meu amor, aludindo às duas grandes superpotências; e as pessoas diziam que as duas eram parecidas, mas nunca vi a semelhança, jamais consegui vê-la. Ambas mortas, de causas não naturais, e eu num país longínquo, com a morte em meu encalço e a história delas na mão, uma história que vivo a crucificar nos portões, nas cercas, nas oliveiras, espalhando-a por esta paisagem de minha última viagem, a história que aponta para mim. Na fuga, transformei o mundo em meu mapa de pirata, cheio de pistas, cheio de xx assinalando o tesouro de mim mesmo. Quando meus perseguidores seguirem a trilha até o fim hão de encontrar-me à espera, sem queixas, ofegante, preparado. Eis-me aqui. Não poderia ter agido de outro modo.
(Para ser mais exato, eis-me aqui sentado nesta selva escura — isto é, neste monte de oliveiras, no meio de um arvoredo, observado pelas cruzes de pedra curiosamente tortas de um pequeno cemitério abandonado, a pouca distância do posto de gasolina Último Suspiro — sem a ajuda nem necessidade de nenhum Virgílio, no que deveria ser o meio do caminho da minha vida, mas que acabou sendo, por motivos complicados, o fim da linha, exausto, totalmente pregado.)
Mas sim, minhas senhoras, além de mim muitas coisas estão sendo pregadas. Por exemplo, bandeiras em mastros. Porém, após uma vida não muito longa (se bem que muito animada), constato de repente que não tenho mais teses. De crucificação, já basta a vida.
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