quarta-feira, agosto 10

A biblioteca no Leblon e a revelação do mistério

Quando a novela das nove horas usa o orquidário do Leblon como cenário para suas tramas, o que acontece com certa frequência, o bairro fica ainda mais caro, mais chato e mais histérico que o normal. Hordas de novos-ricos com pulôveres amarrados nos ombros ocupam a calçada dos bares e os cafés que servem o pior café do mundo ganham filas intermináveis. Mais do que nunca, o bairro se transforma numa passarela onde o carioca exercita a sua vocação irresistível (e principal, dizem) de ver-e-ser-visto.

Levar o cachorrinho para passear, ir ao correio ou comprar um jornal ganha ares de expediçãohollywoodiana, com a visão de paparazzi armando escritórios portáteis sobre motocicletas, enviando fotos em tempo real para portais na internet da celebridade da vez que foi cortar o cabelo ou comer sushi — que, aliás, nunca esteve tão caro e quente.

Em outros tempos, de afiadores de faca sibilando pelas ruas e menos salmão mal cortado, a Beverly Hillsbrasileira não tinha tanto glamour, mas sim uma Biblioteca Pública Municipal. É difícil de acreditar, mas ficava na Rua Dias Ferreira, epicentro da superficialidade ostentatória do Balneário. Numa cidade onde aglomerados de livros são cada vez mais raros, é de se agradecer que após a demolição a biblioteca não tenha se transformado em mais uma farmácia ou academia de ginástica. Hoje ainda existe uma simpática livraria no seu lugar, a Livraria Argumento, que sempre frequento.
Menos amistosos já foram seus seguranças de terno que, mais de uma vez, chegaram a me seguir pelos corredores e estantes, partindo do pressuposto de que somos, todos, surrupiadores de livros. Ou serei só eu, com essa minha cara de ladrão? (Cada vez que entro nesses lugares e sou encarado por mais um segurança de terno, esse personagem essencialmente brasileiro, sou tomado por paranoia instantânea: já estarei marcado?)

É significativo que tenham me perseguido justamente ali, onde passei a infância e adolescência pegando (e devolvendo, dois por semana) livros de todos os tipos, de Jules Verne a Stevenson, passando por Fonseca, Cony, Simenon, Melville, Allan Poe, Lima Barreto e Conan Doyle — só para citar alguns autores que li de graça, escolhidos pelas capas ou títulos, sem qualquer ordem especial, em horas de exploração livre pelas estantes empoeiradas do lugar.

Numa cidade em que o cidadão apavorado confunde estouro de escapamento de moto com tiro, resolvi encarar o fato por outro lado. Afinal, o lugar onde gente inofensiva como eu e os inúmeros leitores que se solidarizaram com o caso, quando o contei numa crônica no jornal, é perseguida e vigiada entre corredores de livros deve ser o espaço mais protegido do Balneário de San Sebastián. Só falta entender o motivo de proteger os livros de seus leitores.

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Há alguns anos, quando escrevi pela primeira vez sobre essa livraria nas páginas de um jornal, fiz uma blague sobre a possibilidade de ter roubado livros e enfrentado seus implacáveis seguranças. Talvez por falta de leitura, alguns detectores de ironia não funcionaram e o cronista ficou demissionário por uma semana. Fui obrigado a declarar que não era um ladrão, explicar a ironia e, ao mesmo tempo, liquidar a ironia do episódio. O aborrecimento foi aplacado quando passei a pensar que estava bem acompanhado: Voltaire, Sterne, Machado, Veríssimo e Nelson Rodrigues, para não citar tantos outros, também já foram levados na literal, e não na literária.

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Entre os 8 e 12 anos de idade, lia muita literatura policial nesta biblioteca, que anos depois quase foi epicentro de minha demissão por injusta causa e falsa acusação de furto. Era um jovem completista, e, em certa fase, dediquei-me a ler todos os livros da Agatha Christie, que não eram poucos. Isso acabou depois de um episódio curioso: peguei um romance que, na metade, trazia escrito a caneta numa das páginas o nome do assassino. Posso lembrar da caligrafia tremida e da frase no canto direito de uma página ímpar. Dizia apenas: “o assassino é ...”.

Fiquei tão revoltado com a interrupção do mistério pelo leitor folgado e anônimo que pedi a ficha do livro e, ao lado da bibliotecária, tentei descobrir de quem poderia ser a letra do autor do crime — cometido não apenas contra a obra, mas também contra seus futuros leitores. Apesar do meu empenho e de uma tarde consultando cadastros, a investigação não teve qualquer resultado e acabei largando não só este romance policial como a leitura do tipo de romance policial que te prende pela trama. Ao saber quem tinha sido o assassino, perdi totalmente a vontade de retomar o livro.

Descobri empiricamente e, há de se confessar, com certo desgosto, que um romance deve ter algo mais que a simples curiosidade sobre quem-fez-o-que para que valha a pena ser lido. E, pouco depois, descobri que os melhores eram aqueles que te infectavam com novos mistérios e perguntas, sem oferecer respostas. Esses livros eram à prova de anotações de pé-de-página.

João Paulo Cuenca

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