Vejo notícias de antílopes, javalis, cervos, vacas, bodes e cabras da montanha ocupando cidades e praias hoje vazias de gente. Enquanto nos sentimos roubados, eles talvez se sintam restituídos. O fato de as crianças em geral serem poupadas da varredura letal dessa pandemia talvez seja a terra agindo, em cumplicidade com os bichos, por um mundo novo, agora sem sutilezas.
Então revejo o papa na praça São Pedro falando sobre o tempo do nosso juízo, sobre o que conta e o que passa, sobre a gente comum e anônima que sempre teceu a continuidade das nossas vidas. O papa sendo ouvido por milhões desde uma praça inóspita, o santo no centro do silêncio da escuta, as almas em roda ali para ouvi-lo onde só vemos o azulado vazio que brilha num fim de tarde sob uma chuva fina.
Quando minha filha adormece, invariavelmente longe da cama, eu a tomo nos braços com uma força que já nem é minha, e por um minuto assume a nossa forma a imagem de um socorro milenar, que, para se desenhar, não nos consulta se cremos ou não cremos. Tudo o que me importaria salvar tem rosto e respira. Dorme, meu amor, que essa peste há de passar um dia. Dorme sem medo, que, a essa hora, até o monstro já está sonhando com seu fim.
Mariana Ianelli
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