segunda-feira, abril 6

A peste e o monstro

Vou esconder da minha filha a guerra desses tempos? A tensão no ar, a aflição, as incertezas? Não escondo. Só adianto o que amanhã ela descobrirá por conta própria. Nem por isso tiro seu sorriso. Temos vilões mandando no país, minha filha, e um monstro que ama a morte das florestas, dos índios, dos bichos, um monstro que já nem elege um alvo certo, sai empesteando tudo e todos que encontra pela frente.

Por isso a gritaria à noite no bairro, a vizinhança revoltada nas janelas. Você ouve o que as pessoas gritam? No cimo dos seus quase quatro anos, ela ouve e parece entender perfeitamente, só não quer mais saber da palavra quarentena. Estamos em casa é para caçar tesouros, pintar planetas, brincar de ser vento vivo e virar as páginas dos livros.

Vejo notícias de antílopes, javalis, cervos, vacas, bodes e cabras da montanha ocupando cidades e praias hoje vazias de gente. Enquanto nos sentimos roubados, eles talvez se sintam restituídos. O fato de as crianças em geral serem poupadas da varredura letal dessa pandemia talvez seja a terra agindo, em cumplicidade com os bichos, por um mundo novo, agora sem sutilezas.

Então revejo o papa na praça São Pedro falando sobre o tempo do nosso juízo, sobre o que conta e o que passa, sobre a gente comum e anônima que sempre teceu a continuidade das nossas vidas. O papa sendo ouvido por milhões desde uma praça inóspita, o santo no centro do silêncio da escuta, as almas em roda ali para ouvi-lo onde só vemos o azulado vazio que brilha num fim de tarde sob uma chuva fina.

Quando minha filha adormece, invariavelmente longe da cama, eu a tomo nos braços com uma força que já nem é minha, e por um minuto assume a nossa forma a imagem de um socorro milenar, que, para se desenhar, não nos consulta se cremos ou não cremos. Tudo o que me importaria salvar tem rosto e respira. Dorme, meu amor, que essa peste há de passar um dia. Dorme sem medo, que, a essa hora, até o monstro já está sonhando com seu fim.

Mariana Ianelli

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