Andou por aqui um diplomata panamenho, Roque Javier Laurenza, que cultuava religiosamente a poesia universal. Sérgio Porto contava que ia com ele pela avenida Atlântica, rumo a uma média com pão e manteiga, distraído e feliz, cantarolando o "Chão de estrelas". Em dado momento o panamenho o agarrou pelo braço: "Por Dios! Repite lo que cantaste. Repete o que cantaste para eu saber se é mesmo verdade o que ouvi". Sérgio repetiu: "Tu pisavas os astros distraída". Ali mesmo Roque Laurenza jurou que acabara de ouvir o verso mais lindo da poesia brasileira.
As quatro sextilhas de "Chão de estrelas" talvez contenham pelo menos 23 dos versos mais bonitos do nosso cancioneiro popular. Pois infelizmente o 24º decassílabo desse poema desafina bastante dos outros. "É a cabrocha, o luar e o violão" é um anticlímax depois do palco iluminado, dos guizos falsos da alegria, do chão salpicado de estrelas e das cintilações poéticas do poema de Orestes. Até a melodia se ressente e perde o embalo no verso final. Mas, sem dúvida nenhuma, Orestes Barbosa e Noel Rosa são os mais altos poetas da nossa música popular.
Há nas canções do primeiro um poder visual fora do comum. Visualizar a emoção é marca certa do poeta forte. As melhores canções de Orestes parecem roteiros cinematográficos, e o conjunto de todas elas é o script de uma época do Rio. Há versos magníficos, tais como: "A lua é um clichê dourado impresso em papel azul" – "O teu vulto de pássaro cansado" – "Aquela que eu procuro é uma escultura sem pintura" – "No Rio dos sonetos de Bilac só de fraque é que se frequentava o cabaré" – "Os fios telegráficos da rua são curiosas pautas musicais" – "Passando pelas frestas da janela, a luz fez uma lúgubre aquarela ─ Deixou-me a flor do asfalto" – "No apartamento agora em abandono, vejo um mantô grená que ela não quis" – "Lua, lâmpada acesa da tristeza" – "Na serpente de seda de teus braços" – "Dorme, fecha este olhar entardecente" – "O mar de franjas e plumas em gargalhadas de espumas" – "Tens o Oriente na boca, linda mulher de voz rouca, ó turca do meu Brasil" – "Hoje choro o seu domínio, desce um luar de alumínio"…
Noel e Orestes urbanizaram o astro popular, que era rural ou favelado. Uma das mais bonitas composições do segundo chama-se exatamente "Arranha-céu": "Cansei de esperar por ela/ toda a noite na janela,/ vendo a cidade a luzir/ nesses delírios nervosos/ dos anúncios luminosos/ que são a vida a mentir"…
Outra é "Vestido de lágrimas", que assim começa: "Vou me mudar soluçante,/ de apartamento elegante/ que tem do antigo fulgor/ lindos biombos ornados/ de crisântemos doirados,/ cenários do nosso amor". É um barato.
José Veríssimo já anunciava o essencial para a compreensão da poesia popular ao escrever que "essas hipérboles gongóricas, de mau gosto em qualquer outra poesia, são o encanto maior da modinha". Quem teme o mau gosto, o exagero, o pernosticismo, não deve pisar em terreiro de música do povo. Isso de querer fazer onda para elevar a qualidade das letras da nossa música é careta, é rebolado de falsa cultura.
Uma das nossas maravilhosas canções populares é um prodigioso rococó popular; chama-se "Rosa" e já inspirou um poema erudito de Vinicius de Moraes. A música também é um alumbramento, mas os versos serão realmente de Pixinguinha? São seis estrofes que se enramam pelo ar como uma trepadeira colorida, seis estrofes de um barroco enfeitadíssimo e descarado: "Tu és divina e graciosa/ estátua majestosa do amor,/ por Deus esculturada/ e formada com ardor/ da alma da mais linda flor/ de mais ativo olor,/ que na vida é preferida/ pelo beija-flor".
Rebuscado de expressões eruditas ou de expressões da gíria, o cancioneiro popular do Brasil sempre foi dengoso. O douto José Veríssimo já achava sublime em seu tempo uma quadra como esta: "Eu queria, ela queria,/ eu pedia, ela não dava;/ eu chegava, ela fugia,/ eu fugia, ela chorava". E o próprio escritor paraense foi a Marajó colher esta joia: "Lá vem a lua saindo/ por detrás da sumaúma,/ tanta mulata bonita,/ minha rede sem nenhuma".
Teófilo Braga derivava nessa modinha das serranilhas e outras cantigas portuguesas, esquecidas em Portugal e conservadas no Brasil a partir do século XVII.
Na lírica dos nossos cantadores estão muitos dos versos mais bonitos do nosso povo. De Jacó Passarinho, cearense de Aracati: "Eu vi teu rastro na areia, me abaixei, cobri co lenço". De Josué Romano sobre seu pai, o cantador Romano da Mãe-d´Água: "Tinha a ciência da abelha, tinha a força do oceano!". Do cearense Pedro Nonato: "Na boca de quem não presta, quem é bom não tem valia". De anônimo materialista: "Eu só creio no que vejo e acredito no que pego!". Por isso mesmo: "Reza para quem morreu é como luz para cego". De João Ataíde: "Quando o rico geme, o pobre é quem sente a dor". Do mesmo, antes de Jacques Prévert e Juliette Gréco: "Eu sou como Deus me fez, quem me quisé é assim". Dum cantador do Juazeiro: "Eu quero falá contigo debaixo dum bom sombrio". Do analfabeto Anselmo: "Eu já cantei co o Maldito e achei ele um bom rapaz". De Serrador são as dez maravilhas do mundo: "Há dez coisas neste mundo/ que toda gente procura:/ é dinheiro e é bondade,/ água fria e formosura,/ cavalo bom e mulhé,/ requeijão com rapadura,/ morá sem sê agregado,/ comê carne com gordura".
Muitos escritores escreveram de propósito para músicos ou tiveram seus versos musicados em serestas; entre eles, José de Alencar, Casimiro de Abreu, Laurindo Rabelo, Machado de Assis, Luis Murat, Gonçalves Crespo, Guimarães Passos, Alphonsus de Guimaraens, Martins Fontes, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo Araújo, Jorge Amado, Guimarães Rosa. É nesse terreno romântico que os seresteiros populares e os escritores eruditos melhor se entendem: aí os primeiros podem ganhar importâncias culturais e os segundos podem brincar com as singelezas da emoção plebeia.
Há muitos anos, no velho "Diário Carioca", Prudente de Morais Neto, Pompeu de Sousa e eu descobrimos que o mestre San Tiago Dantas sabia de cor e cantava afinado as nossas serestas todas. Todas? Acho que sim. E não demonstrou predileção por nenhuma, amava todas.
Mas não posso fazer o mesmo. Tenho de escolher. Minha primeira pedida para seresteiro disposto é "A última estrofe", de Cândido das Neves, o Índio: "Lua, vinha perto a madrugada/ quando em ânsias minha amada/ nos meus braços desmaiou…/ E o beijo do pecado/ o teu véu estrelado/ a luzir glorificou"…
Catulo da Paixão Cearense muitas vezes exagera no pernosticismo ("dos agros pesares o nigérrimo pesar"), mas, corrigido pela sobriedade de Paulo Tapajós, ganha tenência.
"Luar de Paquetá", de Hermes Fontes, é decerto um carro-chefe: "As nereidas incessantes/ abrem lírios ao luar,/ a água em prece burburinha,/ e em redor da Capelinha/ vai rezando o verbo amar".
Também inesquecível é a simplicidade de Freire Júnior: "Oh! linda imagem de mulher que me seduz!/ Ah! se eu pudesse tu estarias no altar!/ És a rainha do meu sonho, és a luz,/ és malandrinha, não precisas trabalhar". Enquadrar uma santa malandra não é mole. Maior simplicidade se encontra numa velha marcha-rancho: "Maria, acorda que é dia,/ a terra está toda em flor/ e o sol apareceu lá no céu,/ anunciando o nosso amor". Uma vez cantarolei estes versos para Tom Jobim e ele me disse: "É isso aí! Isso é que é a poesia popular brasileira. Canta de novo. De quem é?".
Já Prudente de Morais Neto gostava de repetir a "Boneca" de A. Cabral e Benedito Lacerda: "Eu vi numa vitrine de cristal,/ sobre um soberbo pedestal,/ uma boneca encantadora,/ no bazar das ilusões,/ no reino das fascinações,/ num sonho multicor,/ todo de amor".
Mas era o finalzinho da valsa que mais o exaltava: "Enfim eu vi nesta boneca uma perfeita Vênus".
Mário Lago é outro letrista de gabarito: "Mostrei-te um novo caminho,/ onde com muito carinho/ levei-te numa ilusão./ Tudo porém foi inútil,/ eras no fundo uma fútil/ e foste de mão em mão". Em "Saudade da Amélia" Mário Lago exprimiria definitivamente a emoção popular, contraindo num tema ("às vezes passava fome a meu lado e achava bonito não ter o que comer") o impasse dos que trocam de mulher e quebram a cara.
Outro estupendo clássico é "Deusa da minha rua", de Jorge Faraj e Newton Teixeira: "A deusa da minha rua/ tem os olhos onde a lua/ costuma se embriagar./ Nos seus olhos eu suponho/ que o sol num dourado sonho/ vai claridade buscar". E mais adiante a linda imagem: "Na rua uma poça d'água,/ espelho da minha mágoa,/ transporta o céu para o chão".
Felizmente deu certo: um dos mais dignos poemas da nossa lírica popular é uma oferta póstuma a Noel Rosa, uma coroa entrelaçada por Sebastião Fonseca e Sílvio Caldas: "Vila Isabel veste luto,/ pelas esquinas escuto/ violões em funeral,/ choram bordões, choram primas,/ soluçam todas as rimas/ numa saudade imortal". E o comovido: "Adeus, cigarra vadia,/ que mesmo em tua agonia/ cantavas para morrer".
Deixo de citar os escritores ilustres que biscatearam na feira popularesca, como Juraci Camargo ("Favela", "Adeus, Guacira") e Paschoal Carlos Magno ("Pierrô"). Mas, tivesse de escolher um poema de Olegário Mariano, ficaria com o desossado "De papo pro ar": "Não quero outra vida/ pescando no rio de Jereré".
Um que transava do erudito para o popular com graça e espontaneidade era Manuel Bandeira. Os versos que escreveu para Jaime Ovalle ("Modinha" e "Azulão") são cantados por pessoas que nada sabem sobre o poeta.
Luís Peixoto, Bororó ("Da cor do pecado") e Herivelto Martins são outros letristas que nos falam no gênero mais dolente da serenata, do choro, do samba-canção. Nessa mesma faixa é admirável a obra de Lupicínio Rodrigues, quase sempre excelente. Pois pouco antes de morrer, declarou ele numa entrevista gravada que seus melhores versos eram aqueles do "felicidade foi embora" e o da "vergonha é a maior herança que meu pai me deixou". Acho que são exatamente os piores. Fico com aquele bordeleiro da mulher que "ilumina mais a sala do que a luz do refletor"; aliás é este um dos mais intensos poemas populares.
Às vezes sambista de telecoteco, mas principalmente príncipe da canção praieira é Dorival Caymmi, que a gente tanto admira como compositor, poeta e cantor. É um caso à parte, um craque à parte. Raras vezes concedeu parceria a alguém, como foi no caso de "É doce morrer no mar", que tem versos de Jorge Amado. A toada "O bem do mar", pouco divulgada, é dos mais belos poemas de Caymmi. "Dora" é outra beleza.
No samba rasgado bandeio-me de ouvido e coração para os poemas antigos feitos pelos rapazes que eram chamados de malandros, moradores do morro e do subúrbio. Sinhô é o poeta pioneiro. É de se abrir exceção para Ari Barroso, capaz em suas letras de ir do ruinzinho ao sublime; "Inquietação" e "Camisa amarela" são sublimes.
O irônico Marques Rebelo se desmanchava de ternura com "Divina dama", de Cartola. Também do divino Cartola, como reza Lúcio Rangel, é o verso magnífico que sacudia Sérgio Porto: "Semente de amor sei que sou de nascença". Citei certo?
Ismael Silva e Nílton Bastos entram para a história poética popular principalmente com "Se você jurar" e "Sofrer é da vida". Houve tardes antigas em que Vinicius de Moraes ficava no café Vermelhinho a repetir enleado: "Tens um olhar que me consome,/ por caridade, meu bem, me diga teu nome". E Lúcio Rangel chegava para fazer a segunda voz.
Lamartine Babo era impecável nas letras de marchinhas e ranchos. Quantas vezes eu o obriguei (não se fazia de rogado) a repetir "Os rouxinóis".
João de Barro e Alberto Ribeiro são outros dois da melhor cepa; o maior espetáculo da música popular se deu em 1950, no jogo entre o Brasil e a Espanha, quando a multidão começou a cantar "Touradas em Madri". Foi de arrepiar.
Tenho um fraco todo especial pelas parcerias melodiosas de J. Cascata e Leonel Azevedo; gosto muito das marchas de Hervê Cordovil, de Nássara ("um lindo pierrô de outras eras, eterno sonhador de mil quimeras"); pelos sambas de Assis Valente, pelas marchas de Haroldo Lobo, pelas letras muito vivas de Haroldo Barbosa; sou fã de Wilson Batista, Ataulfo Alves e Geraldo Pereira (o "Escurinho" é um primor); Pedro Caetano é dos bons; as letras de Ribeiro Cunha, Henrique Gonzales e Miguel Gustavo, para Moreira da Silva, são exemplares, modelos da vivacidade mental do carioca; Zé Kéti e Sérgio Ricardo têm bonitos poemas; Gadé e Heitor dos Prazeres eram grandes; Sadi Cabral escreveu "Mulher", um poema que Custódio Mesquita musicou esplendidamente; Evaldo Rui escreveu para o mesmo compositor o excelente "Saia do meu caminho"; "Agora é cinza", de Alcibíades Barcelos e Marçal, é de primeiro plano, como "Praça Onze", de Herivelto Martins e Grande Otelo; Antônio Maria escreveu um frevo que evoca a nostalgia do Recife até para quem não viveu lá naquele tempo; Almirante não errava; Antônio Carlos de Sousa e Silva e Nélson Souto fizeram "Você voltou"; Humberto Teixeira e Luís Gonzaga acertaram no alvo em "Asa branca"; entre as letras que escreveu Tom Jobim, "Águas de março" é também uma bossa-nova; Vinicius de Moraes, ao passar para a poesia popular, não levou consigo a casca de erudito, e foi assim que escreveu de fato das melhores letras do nosso cancioneiro; Billy Blanco é fora de série quando registra ou cria a linguagem do Rio; Caetano Veloso mexe bem com as palavras; Chico Buarque de Holanda é outro que trança com muita invenção tanto a melodia quanto o poema.
Mas o maior de todos aqui citados, e dos que não tenho tempo de citar, é Noel Rosa. Os melhores versos da nossa lírica popular são encontrados facilmente nas palavras espontâneas do rapaz de Vila Isabel.
Humor e lirismo. Noel não exprimia nada de fora: era o carioca; era o Rio de Janeiro. Tem muito dengo mas não é pernóstico, a não ser em caricaturas.
"Você me pediu cem mil-réis/ pra comprar um soirée/ e um tamborim./ O organdi anda barato pra cachorro/ e um gato lá no morro/ não é tão caro assim". O historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, era capaz de cantar isso uma noite inteira. Vi, ouvi e historio.
"Até amanhã, se Deus quiser,/ se não chover, eu volto/ pra te ver, oh mulher./ De ti, gosto mais que outra qualquer,/ não vou por gosto,/ o destino é quem quer." – O realismo enfim entrava na canção da despedida, mais ou menos igual desde a Idade Média.
"O orvalho vem caindo,/ vai molhar o meu chapéu/ e também vão sumindo/ as estrelas lá do céu." – O homem da serenata deixava de ser uma abstração e passava a usar chapéu.
"Modéstia à parte,/ meus senhores, eu sou da Vila!" – Como dizem os críticos professorais, era através do regional que o samba passava a buscar o universal.
"Quem é você que não sabe o que diz,/ meu Deus do céu,/ que palpite infeliz." – Era o rádio que voltava a permitir o velho desafio musical dos cantadores.
"Voltaste novamente pro subúrbio,/ vai haver muito distúrbio,/ vai fechar o botequim;/ voltaste, o despeito te acompanha/ e te guia na campanha/ que tu fazes contra mim." – Como já me disse uma vez Araci de Almeida, Noel sabia rimar "pra cacilda". Pura verdade.
"Queria ser pandeiro/ pra sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar"… – As imagens passam a ficar cosidas, casadas.
"A colombina entrou no botequim,/ bebeu, bebeu, saiu assim, assim"… – Os símbolos antigos viram de carne e osso.
"De lutas não entendo abacate/ pois o meu grande alfaiate/ não faz roupa pra brigar." – Era o humor que se atualizava.
"Dançamos um samba, trocamos um tango por uma palestra…/ Só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra." – Era a crônica que se fazia cantada.
"Quando o apito/ da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você." – O cotidiano incorporava-se ao lirismo.
"A poeira cinzenta/ da dúvida me atormenta." – Era o impressionismo.
"O maior castigo que eu te dou/ é não te bater/ pois sei que gostas de apanhar." – Freud entrava na roda de samba.
"Às pessoas que eu detesto/ diga sempre que eu não presto." Era o fim do lirismo que consulta as cartas do amante exemplar.
"Nasci no Estácio/ e fui educada na roda de bamba/ e fui diplomada na Escola de Samba,/ sou independente, como se vê." – A rua era o samba.
"Batuque é um privilégio, / ninguém aprende samba no colégio." – É tudo. Falou e disse Noel Rosa, cem por cento poeta do povo.
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