Andrei Andreevich Mylnikov |
Com minha imaginação solta, penso na dama de branco como uma sílfide, que parece levitar acima do solo, com o seu vestido comprido, esvoaçante. Penso nela como uma mulher pura, inclusive porque nestes tempos de isolamento até os namorados não dormem mais juntos, nem se encontram. Não consigo imaginá-la na cama com homens, esses seres brutos. Com outra mulher, talvez, mas agora deve dormir sozinha, quero crer.
Para mim ela está em outra dimensão. Não tenho propriamente uma religião, mas como guardo dois bons livros de astronomia, que volta e meia releio, penso na grandeza para mim incalculável do universo. Trilhões de astros, bilhões de anos-luz. Mas penso que, se houver um Deus, Ele não é bom, como dizem, mas indiferente à sorte humana, isso se houver um pensamento de Deus.
No entanto, como imaginá-Lo? Não deixo de usar para Ele as maiúsculas de praxe. Cheguei a refletir, sem nenhuma certeza, só dúvidas, se por acaso Ele ainda não estará sendo criado, muito aos poucos, pela mente humana?
Mas o nada também não me angustia. Penso nele como uma espécie de barato como o produzido pelo ópio, que experimentei duas vezes na Meca que é Nova York, onde, com as informações certas, pode se experimentar um pouco de tudo. Mas para conseguir o ópio tinha de digitar uma senha no celular, ora vejam só. Nem sei o que aconteceria comigo se continuasse naquela cidade. Experimentava a droga com uma mulher que eu não amava nem desejava, como ela também não a mim, mas, depois que eu a pagava, gostava de se deitar comigo, drogada, ambos silenciosos.
Não consigo deixar de pensar na dama de branco deitada comigo, quem sabe nua, com seu corpo esguio, mas isso me parece um sacrilégio. A dama vem à minha mente como uma pessoa solitária como eu, não imaginando que a possam observar em sua caminhada, nesta hora tão deserta. Nem transaríamos, pois já estou com setenta e nove anos.
Crio para a dama de branco uma história. Ela me conta sobre sua infância. De como gostava de passear em sua rua de Botafogo de mãos dadas com uma amiga muito especial. De como ela amava essa amiga que morreu muito jovem, de uma doença misteriosa. Mas antes teve tempo de falar que a esperaria. Não foi egoísta a ponto de pedir que a dama de branco também a esperasse ou partisse logo para se juntar a ela. Então a dama de branco teria experimentado várias relações, sempre com um sentido de incompletude, até que chegou este tempo da peste e ela está em isolamento como eu. Às vezes, penso que a dama de branco é a própria morte. Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento pensarei outra coisa. A morte não passa de uma obsessão minha.
Pelo menos é isso que imagino neste momento. Noutra hora posso pensar que ela fora casada com um pianista, um jovem amável e sensível. Depois apago, por ciúmes, esse pianista. Então é ela a pianista e eu a escuto embevecido. Não, sou eu o pianista e toco para ela. Tento compor no pensamento uma melodia, mas logo me vem à cabeça as Gnossiennes, de Satie, que eu escutava compulsivamente na sala, antes de vir para a varanda para acompanhar a dama de branco indo e voltando na área do estacionamento, com a leveza de uma bailarina. Será ela uma bailarina? Satie anotou que as Gnossiennes deviam ser tocadas com convicção e uma tristeza rigorosa. Eu tenho essa tristeza rigorosa, que me faz feliz. Os títulos de Satie são tão interessantes quanto suas obras: Três peças em forma de pera, Prelúdios flácidos, Desespero agradável.
Satie compondo em seu confinamento, só saindo, sempre de terno negro, para encontrar seus amigos dadaístas. Como eu gostaria de estar entre eles. Não, quero viver este momento mesmo. Quero ser eu próprio. Mas quem sabe a dama de branco tocando as Gnossiennes para mim a seus pés? Satie e eu amamos essa tristeza lírica. E a dama de branco, será? Não, penso mesmo que ela é etérea, a caminhar quase sem tocar o solo. Será que não pressente o meu olhar? Poderá ela me amar como eu a amo?
Satie fundou uma religião denominada “Igreja Metropolitana da Arte de Jesus Condutor” e excomungava quem não aderisse a ela. Eu adiro a ela e quem sabe poderia me casar com a dama de branco segundo os seus rituais, ao som da Gnossienne 1. Eu teria prazer em cozinhar para ela, ser seu escravo. Não, não, porque aí haveria os perigos inerentes ao hábito. Prefiro vê-la como que levitando lá embaixo.
Ah, mas como eu gostaria de deitar com a dama de branco numa cama, consumindo ópio. Como não tenho ópio, vai este baseado mesmo. Seria como se nos beijássemos, misturando nossas salivas em sua seda.
Sérgio Sant’Anna
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