segunda-feira, maio 4

A realidade estará se desmanchando?

Na passada terça-feira sonhei que encontrava Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, e que mantinha com ele uma interessante conversa sobre o estado do mundo e a pandemia em curso. Sem surpresa, passeávamos pelo Chiado em lentas passadas melancólicas. Uma luz fria baixava devagar sobre as ruas desertas. Bernardo instalou-se na cadeira vazia, em bronze, colocada ao lado da estátua de Fernando Pessoa. Como não havia mais nenhuma disponível, sentei-me na mesa. Recordo-me (vagamente) de o ouvir defender uma tese segundo a qual o novo coronavírus seria um artefato desenvolvido por uma inteligência terrestre, não humana. Bernardo chamou a atenção para o nosso desconhecimento não apenas de tudo quanto é enorme, mas também daquilo que por ser tão pequeno não conseguimos ver. Acordei nesse instante. Levantei-me e apontei num papel as últimas frases dele. Quando despertei já não me recordava do sonho. Dois dias mais tarde, felizmente, encontrei a folha na qual apontara as frases:

— O universo também cresce para dentro — disse-me Bernardo Soares. — É possível ser-se imenso, sendo-se ínfimo.

A partir das frases fui-me lembrando do resto do sonho. Enfim, não do sonho completo. Mas da parte que relato acima. 

No início de abril vivi um sonho ainda mais curioso, e que agora me parece estranhamente ligado ao de Bernardo Soares. Sonhei que numa grande praça de Madri aparecia uma frase escrita no céu, como se fosse uma nuvem, ou a bruma produzida pelo respirar de alguém no ar gelado: “Todo habla!” (“tudo fala!).

A partir dessa altura começaram a aparecer palavras ou frases breves escritas no céu, um pouco por todo o mundo. Eventualmente, era possível comunicar-se com quem quer que estivesse escrevendo aquelas palavras. “Quem és tu?”, perguntei, ao abrir os olhos, numa praia, e descobrir acima das largas folhas verdes das palmeiras a palavra “Escutem”. E a entidade respondeu: “Somos vocês!”

Na lógica interna do sonho, quem se comunicava conosco era o próprio vírus, ou talvez a entidade responsável pela sua existência.

Suspeito que Bernardo Soares me apareceu no segundo sonho para me ajudar a compreender o primeiro. Se eu não tivesse anotado as frases, ou se não tivesse encontrado o papel onde tomei as notas, teria perdido todo o sonho. Inquieta-me pensar que isso pode ter sucedido e eu nunca conseguirei saber o fim. Em todo o caso, fico com a terrível impressão de que os meus sonhos, tentando explicar a realidade, são mais credíveis do que esta. 

Ora, quase sempre aquilo que nos parece claro e coerente durante um sonho se revela, no momento em que despertamos, ridiculamente absurdo. Se nos fosse possível (talvez seja) despertar da realidade em que vivemos para uma outra, um grau acima desta, isto é, mais lúcida do que esta, provavelmente experimentaríamos um idêntico sentimento. O problema é quando as fronteiras entre sonho e realidade se começam a esbater.

Mau, mau mesmo, é quando os sonhos nos parecem mais lúcidos do que a realidade. Ou é a realidade que está se desmanchando — ou somos nós.
José Eduardo Agualusa 

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