terça-feira, maio 5

O tempo na ponta dos dedos

Há mais de cem anos, Eça de Queiroz defina assim a “crónica”:

"A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o lêem […] A crónica é como estes rapazes que não têm morada sua e que vivem no quarto de seus amigos, que entram com um cheiro de primavera, alegres, folgazões, dançando, que nos abraçam, que nos empurram, que nos falam de tudo, que se apropriam do nosso papel, do nosso colarinho, da nossa navalha da barba, que nos maçam, que nos fatigam mesmo e, quando se vão embora, nos deixam cheios de saudades". (“A crónica “, Distrito de Évora, nº1, 6 Jan 1867.)

Soube deste texto há muito pouco tempo, por intermédio da Carla Rodrigues Cardoso, Diretora da Licenciatura em Comunicação e Jornalismo na Universidade Lusófona, e desde o primeiro momento senti uma empatia muto grande com esta “definição”. Escrevo crónicas há mais de quinze anos e nunca soube porque o fazia. Por vezes havia uma mensagem política que quera transmitir, outras, simplesmente, apetecia-me… era um exercício com o seu quê de egoico, sim. Muitas vezes parece que escrevo para mim, para melhor vivenciar o meu quotidiano.

Já uma vez fizera um diário de viagem, publicado diariamente, mas nunca tinha embarcado numa aventura de escrever diariamente, com base num tema. A Visão aceitou a minha proposta e foram cinco semanas, até ao final do Estado de Emergência. Hoje é a última crónica desta série "2020, com vírus".

Tive a necessidade de fazer estes textos para me obrigar a pensar as grandes alterações mentais que esta nova forma de vida nos ia transmitir. Foi atenção, foi crítica, foi análise muito pessoal do que vi acontecer. Tornei-me espectador ainda mais atento e participativo.

Hoje, com o confinamento a começar a ser levantado, passadas cinco semanas, ao olhar para trás, tantas voltas se deram… tantas questões, tantos medos, tantas decisões difíceis, tanta alteração de hábitos. Foi um tempo único no que foi de prova.

Para mim, foi uma terapia da máxima importância, uma forma de entrar a fundo em questões que mexem comigo, que alteraram a minha forma de viver e de ver o mundo. Para os leitores, espero que tenham sido isso, inserts nas temáticas que se tornaram complexas, mas que também tenham correspondido a momentos de alguma fruição, de verdadeiro prazer e não apenas de inquietação. Para ser produtiva, a inquietação não pode apenas “inquietar”, tem de se transformar em prazer para ser verdadeiramente operativa.

Aliás, essa é a marca mais consciente que imprimo nas minhas crónicas: juntar, ao incómodo de querer fazer pensar, uma dose de ironia, de leveza e de estética.

Só assim me suporto e só assim acho que me suportam.

Obrigado!

Paulo Mendes Pinto

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