quinta-feira, julho 30

Descanso


Uma casa cheia de livros

Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silêncio, mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma pausa mínima na sua vigia, sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressão porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nível transparente, nessa dimensão sussurrada. Os livros sabem mais do que nós mas, sem defesa, estão à nossa mercê. Podemos atirá-los à parede, podemos atirá-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vê-los cair, duros e sérios, no chão.

(...) Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas.
José Luís Peixoto, "Abraço"

Cabana de leitura


Reforma tributária de Guedes acena com taxação ao setor livreiro, que teme efeito 'devastador'

Há uma semana, editores e livreiros vivem uma apreensão além da pandemia do novo coronavírus. A tramitação da reforma tributária no Congresso Nacional acena com uma nova ameaça ao setor. A proposta apresentada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, no último dia 21, concede imunidade fiscal a igrejas, sindicatos, partidos políticos, entidades beneficentes e condomínios, mas não à combalida indústria do livro, que até hoje é isenta do pagamento do PIS e da Cofins graças à Lei 10.865, de 2004. Se o texto da reforma for aprovado como está — e se não for aprovada uma nova lei que dê imunidade fiscal aos livros —, o setor passará a pagar a alíquota de 12% da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que extingue o PIS e a Cofins. Para o presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Marcos da Veiga Pereira, o efeito seria “devastador”. Desde a última sexta (24), quando a primeira notícia sobre o assunto foi publicada pelo colunista Ancelmo Gois, O GLOBO procura o ministério para esclarecer a questão. Até o momento, não houve resposta.

— O livro tem que ser visto como um bem essencial. Apesar de sermos comparativamente uma indústria pequena, somos muito relevantes em termos de contribuição para a sociedade. Isso exige um olhar mais atento do governo — defende Pereira.

Segundo o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares, a proposta apresentada deixou o setor “cético e preocupado”. Ele afirma que, por meio de suas entidades de classe, editores e livreiros estão buscando diálogo com deputados e senadores e tentando convencê-los a estender a imunidade fiscal à indústria do livro.

— Num país onde o livro já é um produto de difícil acesso, tanto pelo baixo índice de leitura quanto pela produção aquém do ideal, o impacto de uma nova contribuição será terrível e certamente provocará aumento dos preços — diz.


O mercado editorial brasileiro anda mal das pernas há tempos: encolheu 20% entre 2006 e 2019, segundo a pesquisa divulgada no início do mês pelo Snel e pela CBL. Nesse mesmo período, o preço médio do livro, descontada a inflação, caiu 34%. Em 2018, as duas maiores redes de livrarias do país, a Saraiva e Cultura, pediram recuperação judicial. Apesar de tudo isso, o segmento vinha reagindo. Mas aí aconteceu a pandemia, as livrarias foram obrigadas a fechar as portas e as editoras tiveram de desacelerar a produção, derrubando o faturamento do setor em abril e maio.

Para Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), o novo tributo obrigaria o setor a um “equilíbrio delicadíssimo” para manter preços acessíveis.

— É necessário que o poder público, em todas as suas instâncias, e a sociedade percebam que o valor dos livros não se mede por um somatório de números tributáveis, mas diz respeito à construção da cidadania — diz Gurbanov. — Nosso alerta tem que ser claro: essa medida é contraproducente não só para o setor do livro, mas para toda a sociedade.

A Constituição Federal proíbe a cobrança de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à impressão”. No entanto, a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviço proposta pelo governo não é propriamente um imposto, mas sim, como o próprio nome anuncia, uma contribuição. No Brasil, há três tipos de tributos: impostos, taxas e contribuições sociais. Impostos e contribuições são arrecadados para custear a atividade pública. Diferentemente dos impostos, as contribuições sociais têm destinações específicas (como o financiamento da seguridade social, no caso da Cofins). Já as taxas são pagas em contrapartida a serviços prestados pelo Estado, como a emissão de documentos ou o licenciamento de veículos.

— Se aprovada a reforma, a isenção fiscal dos livros passa a depender da aprovação de uma nova lei pelo Congresso — explica Osmar Simões, sócio do escritório Chediak Advogados.

Presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, da Leitura e da Escrita, a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) diz que irá defender a imunidade fiscal para os livros. Ela é autora de um projeto de lei que propõe linhas de crédito especiais para socorrer editoras, livrarias e sebos durante a pandemia. Fernanda lembra que, em contrapartida à isenção do pagamento do PIS e da Cofins, as entidades representativas do setor financiam há anos a pesquisa “Retratos da Leitura do Brasil”, que é referência para a formulação de políticas públicas de incentivo à leitura.

Em 2015, a International Publishers Association (Associação Internacional de Editores, IPA) divulgou uma pesquisa sobre a tributação de livros em 79 países. De todos os analisados, 31 (39%) não taxam a venda. Nos demais, o imposto médio sobre as publicações impressas é de 5,75%, e sobre e-books é de 12,25%. Dos nove países latino-americanos analisados (Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e México), o Chile é o único a taxar a venda de livros (19%). “Taxar livros restringe sua circulação, o que deve preocupar os países em desenvolvimento que tentam reduzir seu déficit de conhecimento e também os países desenvolvidos que tentam manter sua competitividade”, conclui a pesquisa.

quarta-feira, julho 29

Leitura de telhado


Uma livraria no céu

Dizem-em que hoje as pessoas pouco entram nas livrarias, e ficar por lá a ver ainda menos. Compram de máscara aquilo de que vão à procura, pagam, passam gel alcóolico nas mãos e vão à sua vida. É preciso cuidado, bem entendido, mas há outras razões para não se entrar em livrarias... Em 1907, uma livraria abriu em Chicago num... sétimo andar. Bem sei que era no edifício das Belas-Artes, que era a sede da intelectualidade e dos movimentos artísticos da cidade, mas não seria de esperar que, tão longe da rua, a livraria «The Air» fosse muito visitada. E, contudo, esteve milagrosamente aberta cinco anos e era frequentada por gente muito lida, além de estudantes de música e actores que actuavam ou estudavam em outros andares do edifício. O segredo? Bem... não só o facto de estar muito bem fornecida de livros e revistas, não só a circunstância de ali se tomar chá enquanto se lia, mas sobretudo o ser, segundo a directora da The Little Review, «a mais bela livraria de todo o mundo». Pudera, o seu design interior, inlcuindo janelas e estantes, era da autoria de Frank Lloyd Wright! Conhecia-a? Eu não. Graças a Deus, tomei conhecimento dela por um amigo que dirigiu a Biblioteca de Arte da Gulbenkian, José Afonso Furtado, no Facebook. Deixo-vos aqui um cheirinho, mas procurem-na na Internet.

terça-feira, julho 28

Dê tempo às férias


Uma amizade sincera

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seu amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.


Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes.

Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.


Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou. 

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incómoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para o meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separámo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros."
Clarice Lispector, "Todos os Contos"

segunda-feira, julho 27

Mergulhado em leitura

André da Loba

Quando até os melhores sonhos ferem

Assim que ultrapassou a linha dos 70 anos, desabaram sobre ele, de uma vez só, todas as calamidades do corpo e da alma. Tudo lhe doía, tudo lhe pesava: andar, ficar sentado, mastigar, e até respirar. Uma depressão aguda passou a martirizá-lo e, apesar das consultas bimestrais com o psiquiatra, a única mudança que a mulher, os parentes e os amigos notavam na situação dele era: ia de mal a pior.

Ele se lastimava o dia inteiro, blasfemava, gemia, xingava, dizia que ninguém se importava com ele. Mas, se a mulher lhe perguntava se ele queria alguma coisa, respondia:

“Não quero nada. O que eu podia querer?”

E voltava a se lastimar, a blasfemar, a gemer, a xingar, a dizer que ninguém se importava com ele. Procurando alívio no sono, cada vez ia se deitar mais cedo: às nove, às oito e meia, às oito. Mas acordava às dez, à meia-noite, às duas, às quatro, às seis, atormentado por pesadelos em que a única variação era a forma pela qual morria:afogado no naufrágio de um transatlântico, sufocado no incêndio da casa, baleado num assalto.

Levantava-se de manhã como se levantaria um morto da tumba: pálido e mudo. A mulher, para não receber respostas desaforadas, não fazia nenhuma pergunta. Punha o café, o leite, o pão, a margarina, o queijo, sentava-se e tentava comer sem um barulhinho, para adiar a primeira explosão do marido.

Certa manhã, uma surpresa: o homem sentou-se, abriu um sorriso, deu um bom gole no café, estalou a língua, satisfeito, e mordeu o pãozinho como se fosse a maior das delícias.

A mulher se encorajou:

“Você parece ótimo hoje.”

“É.”

“O que foi?”

“Eu tive um sonho bom. Voltei no tempo. Sonhei que tinha dez anos. Era 23 de dezembro e meu pai prometeu me dar no dia seguinte a bicicleta que eu vinha pedindo fazia dois anos.”

“É bom ser jovem de novo.”

“É. Mesmo que seja só num sonho.”


Nesse dia, o homem gemeu menos e quase não foi ranzinza. À noite, foi abençoado com outro sonho, que se apressou a contar à mulher na manhã seguinte:

“Ganhei a bicicleta. Foi justinho como aconteceu de verdade, 60 anos atrás. A bicicleta não estava com os outros presentes embaixo da árvore e eu achei que meu pai ia me decepcionar outra vez. Mas ela estava escondida na garagem. Meu pai me pediu para ir dar a partida no carro, para ele consertar o motor, mas era uma pegadinha. Quando ele acendeu a luz, lá estava a bicicleta. Você não me ouviu gritar de alegria?”

“Não. É engraçado, isso. Você anda sonhando em sequência.”

“É. Como se eu estivesse vivendo de novo minha infância, um dia depois do outro.”

Também nesse dia o homem pareceu ter esquecido as dores e a depressão. Tagarelou a manhã toda, almoçou com gosto e, à tarde, animou-se a dar um passeio a pé.

A mulher estava preparando o jantar quando ele voltou. Vinha irritado e triste.

“Ei, o que foi?”, ela estranhou.

“Estou pensando se esta noite eu vou sonhar de novo.”

“E isso não é bom?”

“Bom? Como pode ser bom? Pela lógica, hoje eu vou sonhar que é 25 de dezembro e que eu vou sair pela rua com a bicicleta que ganhei ontem.”

“E daí?”

“Daí que eu não vou conseguir, com as pernas doendo como estão.”

“No sonho você consegue, você vai ver.”

O homem parou para pensar. Ficou assim alguns instantes. Depois, ainda desanimado, disse, apalpando a perna, onde havia uma cicatriz bem antiga:

“É. Mas, se eu conseguir, vou bater no muro e cair bem na frente da minha namoradinha. E todos vão rir de mim, como naquele dia.”

Nessa noite, o homem deitou-se tarde e fez o possível e o impossível para se manter acordado.
Raul Drewnick

Livro também refresca

 Linzie Hunter

A ressurreição da grande dama da ficção científica

Octavia E. Butler escreveu seu primeiro conto aos 12 anos. Tinha assistido a um filme horrível, intitulado A Garota Diabólica de Marte, e havia dito a si mesma, enquanto o via, que podia fazer melhor. Já fazia anos que a pequena Octavia devorava histórias de ficção científica. Comprava revistas compulsivamente. As clássicas da época – final dos anos 50, início dos 60 −, Amazing e Fantasy and Science Fiction, além de Galaxy. Embora nenhum dos protagonistas das histórias que lia tivesse sua cor de pele, ela não se importava, porque iria mudar as coisas. Primeiro cuidaria daquela garota diabólica de Marte, depois do resto.

N. K. Jemisin, sua principal herdeira, hoje no topo do gênero – não há escritora mais premiada do que ela no momento, independentemente do gênero −, era uma adolescente quando se deparou pela primeira vez com uma das histórias de Butler. “Nada tinha me preparado para aquilo”, disse Jemisin. Corriam os anos 80, o livro se intitulava Despertar (Editora Morro Branco) e era protagonizado por uma mulher negra que acordava 250 anos depois de um holocausto nuclear. “Lembro que fiquei fascinada ao pensar em uma mulher negra habitando o futuro. Ninguém tinha feito algo assim antes na ficção científica”, afirmou a escritora, a única pessoa a ganhar o prêmio Hugo três vezes seguidas.

Embora fosse, sem dúvida, revolucionária, Butler não ficou famosa em sua época, mas muito depois. Na verdade, a fama chegou depois de sua repentina morte, em 2006 – estava passeando, caiu e bateu a cabeça na calçada. Tinha 58 anos, e não ficou claro se a queda foi provocada por um infarto. Foi aí que seus romances, até então de pequeno alcance, começaram a vender cerca de 100.000 exemplares por ano. Nascida em Pasadena, Califórnia, em 1947, filha de um engraxate e uma criada, Butler cresceu com sua avó – seu pai morreu jovem, e sua mãe trabalhava o dia inteiro. Filha única e solitária, desenvolveu, para se distrair, uma enorme imaginação.

Imaginação que deu forma, em 1971, ao seu primeiro conto publicado, Crossover. Uma história de perdição protagonizada por uma mulher que odeia seu trabalho em uma fábrica e não para de pensar em cometer suicídio. “Seguiram-se outros cinco anos de rejeição editorial, e um milhão de empregos, até conseguir vender o próximo”, contou a própria Butler certa vez. Recentemente, Jemisin e outros de seus hoje ilustres leitores, entre eles Marlon James e Nnedi Okorafor, lembraram que a ficção científica nunca foi um lugar amigável para a raça negra – nem para nenhuma que não fosse a branca. “Não se tratava apenas de que a ficção científica fosse racista, os autores também eram”, disse Jemisin.

De qualquer forma, a ficção científica de Butler sacudiu, de sua trincheira sempre inconformista, as bases do gênero, com relações entre espécies, homens grávidos e civilizações submersas, abordando, de seu singular ponto de vista, assuntos como raça – não abordado nesse gênero até então –, família, sexo (tudo o que ela escreveu sempre teve uma poderosa e também inédita ambiguidade sexual), determinismo biológico, ciência médica e classismo. Butler derrubou, um por um, todos os muros que, em sua cegueira existencial, o gênero tinha construído. Ao fazer isso, ela abriu caminho para o que estava por vir: a complexa new wave.

“Quando tenho de enfrentar algo que me perturba, escrevo sobre isso” confessou Butler no epílogo que se segue ao famoso conto Filhos de Sangue, que dá nome à coleção de contos e ensaios que estão sendo publicados no Brasil pela editora Morro Branco e na Espanha pela Consonni. A edição da Consonni, intitulada Hija de Sangre y Otros Relatos, de certa forma ressuscita a escritora em espanhol, pouco antes que ocorra o reconhecimento definitivo de sua importância nos Estados Unidos: no próximo ano, a Grand Central Publishing reeditará grande parte de seus romances e a Library of America a incluirá no catálogo publicando, em um volume, o melhor do que escreveu. Butler queria que se soubesse exatamente por que fez o que fez, porque às vezes tinha a sensação de ler interpretações completamente errôneas de seus contos. “Fico surpresa que algumas pessoas tenham interpretado Filhos de Sangue como uma história de escravidão”, escreveu, por exemplo.

Não, Filhos de Sangue não é uma história de escravidão. “É uma história de amor entre dois seres muito diferentes, e é meu conto sobre homens grávidos”, explica. “Será que eu poderia escrever uma história em que um homem escolhesse engravidar, não por alguma espécie de competitividade mal entendida para demonstrar que tudo que uma mulher faz um homem também pode fazer, nem porque ele fosse obrigado, nem mesmo por curiosidade, e sim como ato de amor?”, perguntava-se. Escreveu. Mas a explicação continua: “Também é uma tentativa de atenuar o medo que tenho da mosca-varejeira, que põe seus ovos em feridas causadas por outros insetos e cresce alimentando-se de sua carne, como um verme”.

A escritora ia viajar para a Amazônia peruana para fazer pesquisas para os livros de sua série Xenogênese e sabia que nessa região podia se deparar com varejeiras. “Escrever sobre meus problemas é minha maneira de colocá-los em ordem”, revela, nesse mesmo epílogo. “Lembro que em uma aula, em 22 de novembro de 1963, peguei um caderno e comecei a escrever minha resposta à notícia do assassinato do John Kennedy”, diz também. E acrescenta algo mais sobre Filhos de Sangue, em um amostra de como tudo que escrevia era caleidoscópico. “Tentei fazer mais uma coisa em Filhos de Sangue. Tentei escrever uma história sobre o pagamento do aluguel”, assinala. Nada de escravidão. Sobre a escravidão, escreveu em Kindred: Laços de Sangue, um romance de viagens no tempo que viaja precisamente a essa época.

Essa pioneira do afrofuturismo também escreveu sobre religiões fictícias (na série Parábola, que finalmente ganhou um prêmio Nebula em 1999) e sobre humanos salvos, uma e outra vez, por raças extraterrestres – isto já ocorre em Filhos de Sangue, que data de 1984, e significou sua entrada no universo, já um pouco mais aberto, da ficção científica, pois conseguiu com ele o Hugo e o Nebula de melhor conto –, como ocorre na série Liliths’ Brood, como também é conhecida a Xenogênese. Escreveu até sobre vampiros. Fledgling foi seu último romance publicado – em 2005 –, uma história de vampiros em um contexto de ficção científica, ligada de certa forma ao universo de Parábola. Também escreveu, é claro, a história sobre A Garota Diabólica de Marte.

Com aquela história, fez seu primeiro romance, que terminou em 1976 e chamou de Patternmaster, mas só o publicou tempos depois, porque o transformou no quinto volume de sua série Patternist. Teve o apoio, praticamente desde o início, de Harlan Ellison e Samuel R. Delany. Pouco antes de morrer, descreveu-se como “uma eremita associal em meio ao pessimismo de Seattle, e se me descuido, uma feminista, negra, batista, com uma combinação impossível de ambição, preguiça, insegurança, certeza e impulsividade”. Esqueceu de dizer que também foi uma garota chamada por sua mãe de Junie que, certo dia, decidiu desligar a televisão e começar a escrever melhor aquilo que estava vendo, porque aquilo que estava vendo não tinha nada a ver com ela.

sábado, julho 25

Todos aos livros

Giuliana Marigliano

Blá blá blá

 Pascal Campion
Palavras, palavras, palavras… Eu já não aguento mais!

Gonzaguinha, ainda bem que você não está aqui para ver o que andam fazendo com as palavras. Elas agora servem para disfarçar mentiras, negar evidências, espalhar boatos, propagandear remédios ineficazes, ameaçar quem permite ser considerado inferior. O poder que elas têm continua em vigor, pois, basta divulgar algumas poucas, para o mundo inteiro comentar, repassar, julgar, mesmo quando vindas de fontes duvidosas ou anônimas.

Mas as palavras dos líderes já não lideram multidões, a palavra empenhada é mero acordo temporário nem sempre cumprido, a palavra da lei é modificada conforme a necessidade dos interessados. Tudo ficou líquido, etéreo. Dia após dia, pisamos em areia movediça, sem certezas absolutas, sem futuro garantido.

Desabafamos o horror dessa pandemia moral criando charges, jingles, piadas, caricaturas, paródias que espalhamos pelas redes sociais, em busca de eco. Pouco repercutem também as palavras de especialistas sobre nossas Saúde, Educação, Economia, nossos Direitos e Deveres.

Entre os oprimidos, vivem os que acreditam nas versões oficiais sem qualquer questionamento e os que protestam, sempre sujeitos à repressão, por mais que as palavras governamentais preguem a democracia. Entre os poderosos, ainda sobrevive a prepotência, geralmente sinônimo de crueldade.

Algumas palavras têm feito alguma diferença, quando apresentadas na mídia. Escândalos já não contam com o silêncio das vítimas, maus tratos são denunciados, títulos ganham o verdadeiro valor, quando usados para desmandos, quadrilhas são desmascaradas. Os resultados de tudo isso ainda é modesto, mas começa a incomodar quem se julgava intocável.

Não bastasse tal realidade, temos ainda a Covid-19, o desmatamento e os gafanhotos para enfrentar. Mas o brasileiro resiste, acostumado que é a superar tragédias. Ainda consegue rir da própria desgraça, sobreviver ao isolamento que deprime nossa natureza comunitária e manter acesa a débil lamparina da esperança. O que confirma os versos de Gonzaguinha:

Com tempo ruim, todo mundo também dá bom dia…
Madô Martins

quinta-feira, julho 23

Praia com livros

Miguel Almagro

A última sessão

Fazia finalmente parte do grupo das matinés dos mais velhos. É certo que isso acontecera por imposição da minha mãe e não por vontade da minha irmã e dos restantes membros do grupo, mas não me interessava. Ir ao Miramar sem ser atrelada a um adulto causou-me borboletas na barriga, sentia-me livre, ainda que não o soubesse nomear.

Parámos à entrada, em frente dos cartazes, e o Rui tentou adivinhar a história do filme que íamos ver, Dois Homens e Um Destino. A minha irmã e a Editinha suspiraram pelo Paul Newman, O Robert Redford também é um grande borracho, disse a Anita. O Garrincha e o Nando garantiram a pés juntos que nenhuma mulher sorria como a Katharine Ross. Não conseguia repetir os nomes dos atores e parte das conversas da minha irmã e dos seus amigos era-me incompreensível. Quando o filme começou e me submergiu num mundo tecnicolor, estremeci com o impacto violento do som, a brisa arrepiou-me, o Miramar não tinha paredes e usava o céu como teto, a Baía de Luanda ficava logo atrás do ecrã gigante, havia os jardins em socalcos, era tudo tão diferente, tão maior, tão mais bonito do que o África, o cinema do nosso bairro. Era difícil seguir o enredo, a rapidez com que as legendas se sucediam atrapalhava-me a leitura, estava sempre a perguntar à minha irmã, O que é que eles disseram?, a maior parte das vezes recebia de volta uma cotovelada, Se não te calas nunca mais te trago.

Raindrops keep falling on my head
But that doesn’t mean my eyes will soon be turning red
Crying’s not for me


Aqui todos dizem que isso vai acabar, que as colónias vão deixar de ser nossas, a filha do Manuel Tendeiro já cá tem tudo, gaba-se de que não deixou ficar aí um alfinete, o Doutor Cabral garante que vai haver um banho de sangue… Pouco depois da revolução, as cartas da avó Marquinhas passaram a falar sempre do mesmo. A minha irmã e eu continuávamos a rir-nos da sua caligrafia mal desenhada, dos muitos erros ortográficos, das frases sem pontuação. A nossa mãe já não repetia a explicação de que a avó aprendera a ler e a escrever aos cinquenta anos, depois de termos ido para Luanda para poder corresponder-se connosco sem intermediários, sem que o padre da aldeia ficasse a saber das nossas vidas. Em vez disso, virava-se aflita para o nosso pai, Olha o que a minha mãe mandou dizer. Ele também se ria das cartas da avó Marquinhas, mas o motivo era outro, A tua mãe pensa que isto é a Fontelonga, sabe lá ela o que é a vida aqui, a grandeza deste país, como é que isto pode acabar? E a conversa divergia, a ladainha do quotidiano ganhava à da avó Marquinhas, O que vai ser hoje o jantar?, É preciso cortar umas ramadas à mangueira, Não consigo comer, o peixe tem espinhas, Vão-se deitar que amanhã têm aulas cedo. Fora da nossa casa, a vida ia mudando vertiginosamente, mas a vontade do meu pai de que tudo corresse bem e a nossa capacidade de adaptação faziam esquecer as mudanças e as cartas da avó, Os filhos do Ezequiel também já cá estão, dizem que os comunistas vos querem matar, Nossa Senhora de Fátima vos guarde.

I don’t know how to love him
What to do, how to move him
I’ve been changed, yes really changed


Maria Madalena cantava ao Jesus adormecido, enquanto a minha irmã e eu estávamos escondidas, à entrada do Miramar. Aquela canção era uma das preferidas da minha irmã, tinha o single e tudo, mas dessa vez não se pôs a trauteá-la na sua compenetrada desafinação adolescente. Quando soubemos da reposição do filme Jesus Cristo Superstar dissemos imediatamente que o queríamos ir ver. A nossa mãe opôs-se, No estado em que as coisas estão, só se deve sair de casa se tiver mesmo de ser. Com o estado em que as coisas estão a minha mãe queria dizer a guerra. O nosso pai, na vã tentativa de se convencer de que ia correr tudo bem, autorizou a nossa ida, De qualquer maneira, tenho de ir à Baixa, levo-as e trago-as. Voltaríamos antes do recolher obrigatório.

Assim que o nosso pai nos deixou e entrámos no Miramar, a minha irmã disse, Não devíamos ter vindo, somos as únicas brancas sozinhas. E, para mais, o cinema sem amigos não era a mesma coisa. Já nada era a mesma coisa. Alguns cartazes tinham sido rasgados, não havia anúncios de novos filmes, as notícias do estado do mundo estavam meses atrasadas, o vendedor dos chocolates já não se passeava entre as filas, o bar fazia pena com as suas prateleiras vazias. Sentámo-nos numa das primeiras filas. Ao nosso lado, famílias dos musseques mais próximos, soldados armados de G3, miúdos que costumavam andar a engraxar sapatos ou a vender laranjas. Miúdos que deviam ter feito parte do nosso grupo de cinema de antes. Deveria ter sido assim, mas não fora. E, agora, nos últimos tempos, tudo conspirava para que nos afastássemos ainda mais uns dos outros, para que tivéssemos mais medo uns dos outros, para que nos dividíssemos mais. Nós e eles. Como em qualquer guerra.

Se o filme fosse de cowboys, podíamos ter achado que os primeiros tiros que se ouviram eram a fingir. As rajadas que se seguiram não deixaram dúvidas de que o tiroteio estava mesmo a acontecer. Alguns brancos levantaram-se e foram-se embora. A minha irmã e eu não sabíamos o que fazer. Não tardou que o homem da bilheteira viesse avisar que a cidade ia ser cortada a meio, dali a pouco ninguém poderia passar de um lado para o outro da linha de comboio. A debandada dos brancos não se fez esperar. A nossa casa ficava além da linha de comboio, mas tínhamos de esperar pelo nosso pai, ele apanhar-nos-ia no fim do filme. Mas como continuar sentadas, sendo as únicas brancas?

Já na rua, enquanto procurávamos um sítio para nos escondermos, continuámos a ouvir Jesus, ao longe.No ecrã do Miramar, nada o desviava do seu destino. Quase não passavam carros de civis, em contrapartida abundavam os jipes com soldados dos movimentos independentistas. E se morrermos por causa do cinema? Lembro-me de que foi exatamente assim que a minha irmã disse, Por causa do cinema. Fiquei por segundos distraída do medo, presa na estranheza daquela formulação, que me soou mais a um propósito do que a uma culpa. Já me tinham ensinado que a morte tinha utilidade, Jesus morrera por nós, os soldados morriam pela pátria, mas para que serviria a nossa morte?

Jesus ainda não tinha sido crucificado, quando o nosso pai apareceu. Entrámos para o carro com o sol a pôr-se no mar. Precipitadamente como sempre fazia por lá. E avançámos pela noite.

quarta-feira, julho 22

Manhã de chuva

 Jungsuk Lee 

Livro reúne obra jornalística de Gabriel García Márquez, do repórter-raiz ao cronista fantástico

Gabriel García Márquez estava sendo generoso quando disse que o jornalismo era “o melhor ofício do mundo”. A célebre frase expressa bem a paixão pela profissão que adotou ainda jovem e que ajudou a semear seu estilo literário. Basta dizer que em 1999, aos 72 anos e consagrado como o grande representante do realismo mágico latino-americano, Gabo chegou a usar parte do dinheiro de seu Nobel para comprar a revista colombiana “Cambio”, pois queria se dedicar à reportagem.

Desde 1948, quando saiu sua primeira coluna no diário “El Universal”, de Cartagena — cidade em que criaria uma fundação justamente para formar jornalistas, em 1994 —, García Márquez experimentou todo o repertório de textos para jornais. Publicou artigos, cartas, crônicas, perfis e matérias investigativas. Tudo com seu inconfundível estilo, que desafia a noção de realidade do leitor. Com um acervo tão rico, diversas antologias sobre sua obra jornalística buscam retratar o estilo do “Gabo repórter”. A mais recente delas, com o título “O escândalo do século” (Record), acaba de ser lançada no Brasil. A seleção de 50 textos publicados entre 1950 e 1984, feita por seu editor espanhol e amigo Cristóbal Pera, confirma a genialidade do colombiano e, em tempos de combate às fake news, evoca o poder do jornalismo e da escrita.

Para o jornalista americano Jon Lee Anderson, correspondente de guerra, biógrafo de Che Guevara, colaborador da revista “The New Yorker” e autor do prólogo do livro, a antologia reúne textos nos quais floresce o “Gabo clássico”: um contador de histórias por natureza, com um dom de prosa clara e observação social mordaz. Ele destaca textos como “S.S. sai de férias”, em que o escritor transforma a prosaica e habitual viagem do Papa saindo do Vaticano para o Palácio de Castel Gandolfo, nos arredores de Roma, em um conto de aventura cheio de suspense.

— Esta pequena narrativa, que ainda me faz rir quando a releio, é um exemplo perfeito da capacidade de Gabo de transformar o mundano em épico. Ela também ilustra sua crença de que o jornalismo, assim como a ficção, era melhor quando se baseava em uma boa e bem contada história — diz Lee Anderson.

Na obra, o leitor pode ainda acompanhar o colombiano narrando desde um insólito caso real de tráfico de mulheres de Paris para a América Latina até uma reconstituição cinematográfica do sequestro em massa de parlamentares pela guerrilha sandinista, na Nicarágua, em 1978. Pode encontrar ainda pérolas ficcionais publicadas na imprensa como o conto “A casa dos Buendía”. Nesse texto, seu famigerado personagem coronel Aureliano Buendía aparece pela primeira vez, numa espécie de fragmento inicial do que viria a ser “Cem anos de solidão”, seu romance mais aclamado.

A antologia revela tanto o lado de García Márquez como jornalista-raiz que incomodava poderosos com suas reportagens quanto o Gabo cronista fantástico, sarcástico e leve, tão vivo em sua ficção. Em muitos casos, os dois parecem indissociáveis.

Um exemplo é a grande reportagem “O escândalo do século”, que dá título à antologia. Enviado à Itália, ele narrou com precisão de jornalista o caso da jovem Wilma Montesi, filha de um carpinteiro em Roma encontrada morta em uma suspeita de assassinato envolvendo a elite política do país, em 1955. Em meio à narração atenta dos fatos, ele deixava sua marca já no subtítulo: “Morta, Wilma Montesi passeia pelo mundo”.

Amigo de García Márquez e tradutor de suas obras para o português, o escritor e jornalista Eric Nepomuceno recorda bem a “grandeza de repórter” que o colombiano sabia exercer. Ele lembra de um episódio, quando foi escalado para cobrir o cortejo fúnebre do líder da revolução do Panamá Omar Torrijos, morto em 1981. Ao retornar ao México, onde era correspondente, foi encontrar Gabo, que havia deixado uma série de mensagens pedindo para vê-lo.

No encontro, o amigo iniciou um interrogatório minucioso. Queria saber todos detalhes da cobertura: como estavam reagindo as pessoas, como estavam as ruas da cidade do Panamá... No fim das contas, Nepomuceno contou ao menos cinco vezes a mesma história para o colombiano. E, no fim de semana seguinte, veio a surpresa.

— Nós dois escrevíamos para a revista mexicana “Processo”. E, quando abri o exemplar de sábado, estavam lá minha crônica sobre a morte de Torrijos e uma reportagem sobre o caso escrita de forma perfeita pelo García Márquez, sendo que ele nem tinha estado no local — conta.

Ele lembra que o autor de “Crônica de uma morte anunciada” seguia uma norma bem pessoal para separar a produção jornalística da ficcional. Dizia Gabo que, se num texto de ficção for acrescentado um dado da realidade, o leitor poderá sair convencido de que aquilo é verdade. Agora, se na literatura de não ficção tiver um dado falso, toda a verdade estará arruinada.

Apesar do encantamento com o jornalismo, o escritor também não se furtava a pôr o dedo na ferida da profissão. Na crônica “Literaturismo”, também presente nesta antologia, ao descrever o tratamento dado por um jornal a um caso tenebroso de assassinato, finaliza o texto com um resumo preciso da tensão narrativa entre o jornalismo e a literatura:

“A notícia não mereceu — ao câmbio atual da moeda jornalística — mais de duas colunas na página das notícias locais. É um ato sangrento, como qualquer outro. Com a diferença de que, nesses tempos, ele não tem nada de extraordinário, pois como notícia é demasiado corrente e como romance é demasiado truculento. Conviria recomendar um pouco de discrição à vida real”.

terça-feira, julho 21

Dá um tempo!


Minhas livrarias

Uma de minhas tantas preocupações nestes dias de breu são as livrarias pequenas, as mais cálidas sempre. Sobreviverão?

Livrarias ocupam um lugar especial na minha memória, embora eu não tenha ideia de qual foi a primeira que conheci. Nem a vigésima.

Lembro porém perfeitamente — exceto o nome — da primeira que me marcou e, de certa forma, ajudou a mudar meu rumo de vida.

Foi em Montevidéu. Eu tinha uns 14, talvez 15 anos, e acompanhava meu pai, que estava a trabalho no Uruguai.

E então, andando pela Avenida 18 de Julio, vi numa vitrine um tesouro que tinha sido mencionado por Vinicius de Moraes: “Veinte poemas de amor y una canción desesperada”, de Pablo Neruda. Foi o primeiro Neruda que li na vida, tropeçando no castelhano.

Passadas tantas décadas, conto que espalhadas pelo mundo tenho, além de cafés, bares e restaurantes, livrarias. E que delas guardo uma memória cálida e permanente.

Algumas desapareceram faz tempo. Mas agora, nesses dias de pandemia, quarentena e breu, lembro de todas.

Lisboa, por exemplo. A Bertrand, no Chiado, é considerada a mais antiga livraria do mundo em atividade. E tenho também A Barata, onde em 2018 lancei a bela edição que a Porto fez de meus contos, “Bangladesh, talvez, e outras histórias”.

Até o começo dessa pandemia, continuavam lá, firmes. Terão resistido?

Em Madri tenho a Casa del Libro, na Gran Vía 29. É imensa, e não gosto de livrarias imensas. Mas sempre passo por lá atrás de tesouros. Outra é a Traficantes de Sueños, simpática, bem nutrida, jovial.

Paris? Ora, ora. Hemingwayniano radical, tenho a livraria ícone dos anos de 1920: Shakespeare And Company, que cometeu a ousadia insuperável de virar editora só para publicar “Ulysses”, de James Joyce, rejeitado pela censura das grandes, médias e pequenas editoras da época. Visito outras, claro. Mas a Shakespeare é ponto obrigatório quando flano por lá.

E tem Buenos Aires. Existem na cidade, dizem, mais livrarias que no Brasil inteiro. Faz um tempinho perdi a Clásica y Moderna, que não aguentou a recessão do governo Macri. Mas ainda existe em Palermo Viejo, espero, a esplêndida Libros del Pasaje.

No Rio, lembro dos tempos em que Aloisio Leite, sócio da Timbre, no Shopping da Gávea, capitaneava reuniões às quartas-feiras. Antônio Torres era assíduo, e volta e meia a Miúcha aparecia. Continuo dando uma passada por lá, e também pela Argumento, no Leblon.
Lembro da Malasartes, no andar de cima da Timbre, onde comprava livros para o Felipe quando ele tinha 9 ou 10 anos.

Com carinho especial lembro de uma nova, que começou a funcionar — e a funcionar bem — quando veio a pandemia e precisou fechar: a Janela, pertinho de casa, na rua Maria Angélica. Confio que Leticia e Martha, as donas, tornem a abrir as portas.

É com saudades que lembro de duas livrarias da Cidade do México que já não existem, a Ágora e a Parnaso. Hoje, tenho lá a El Sótano. Atenção: em castelhano, sótano não é sótão, é o contrário: porão...

Na Ágora eu tinha, toda quarta-feira às sete da noite, com rigor de sacerdote asteca, meu encontro com Juan Rulfo. Ele tomava café e contava coisas que estavam acontecendo em sua vida. Havia deixado de escrever fazia tempo. Contava coisas e eu sabia que mentia. Continuava criando o que já não escreveria. As histórias de amor eram especialmente belas e dilacerantes.

Rulfo partiu para sempre em 1986. E alguns anos mais tarde, como se não tivesse suportado a ausência de seu frequentador mais luminoso e iluminado, a livraria fechou.

Eu morava perto da Ágora, num apartamento do Rulfo, até que em 1980 mudei para Coyoacan, o centenário e belíssimo bairro colonial da capital mexicana.

A três quadras de casa estava a praça matriz dos tempos em que Coyoacán não era bairro, era município. Numa esquina dessa praça, a livraria Parnaso, que também tinha um café.

Virei frequentador. Foi lá que Eduardo Galeano e eu passamos dias e dias revisando a tradução de “Os Nascimentos”, primeiro volume da fabulosa trilogia “Memoria del Fuego”.

Cada vez que entrávamos num beco sem saída e ficávamos sem saber como continuar, passava pela calçada da praça uma moça belíssima. E imediatamente encontrávamos a saída do beco.

Nunca ouvimos sua voz, nunca soubemos seu nome. Eduardo e eu sempre ríamos dessa lembrança.

Um dia, nossa livraria daquela esquina fechou.

Mas na minha memória, a Parnaso permanece. E toda tarde, lá pelas quatro, a moça desliza pela calçada da praça, distante e em silêncio, sua beleza solar.
Eric Nepomuceno

segunda-feira, julho 20

Cérebro de leitor


Biciletai, meninada!

O que é uma associação de ideias: essa conversa sobre bicicletas tem para mim um forte sabor de infância. E acontece logo na véspera do Natal. Depois do velocípede, a bicicleta era mais que um sonho. Era uma obsessão que a gente sonhava 24 horas por dia. Um presentaço. Novinha em folha, vinha do Rio. Era como se viesse do Céu. Não era um garoto que subia ao selim. Era um príncipe, um reizinho.

Que menino não pensou um dia em voar? Pois a bicicleta voava. E voava baixo, ao nível dos espectadores. Todo o vocabulário vinha imantado pelo sortilégio que só a poesia tem: guidom, quadro, pedal, corrente, catraca. Quem não sabia andar de bicicleta estava atirado às trevas exteriores. Excluído do mundo encantado. Podia não ser um feliz proprietário. Mas não saber andar, ah, isto nunca! Bom era andar "sem mãos". Ou de pé. Ou de costas. Mil acrobacias.

Não sei em que vai dar essa gritaria toda. Pode ser até que saia um gol de bicicleta. Mas não vou morrer de espanto se, vistos e revistos os autos, tudo acabar no tradicional silêncio que sucede o alarido e a festa. De qualquer forma, já há lucro a registrar. E até um enriquecimento (lícito) do vocabulário, com a circulação de palavras como "ciclovia" e "bicicletário". Ao lado dos neologismos, voltaram as casas de aluguel. Até parece que estamos em Cuba. Ou na Holanda.

É de 1946 o livro "Poemas, sonetos e baladas", com vinte e dois desenhos do Caloca, o Carlos Leão. É nele que está a "Balada das meninas de bicicleta". Do Vinicius, claro. Homem de sorte. Tinha uma fobia: medo de ser enterrado vivo. Daí a sua outra balada, a do "Enterrado vivo". Mas que nada! Morto, cá o temos de volta, vivíssimo no comercial da televisão. Milagre do computador. Ao lado do Tom e do chope, como nos velhos tempos. Só falta falar. Perdão, não só fala, como canta.

Saudades dos passeios de bicicleta que inspiraram a balada do Vinicius. Num surto de infância, saíamos do Posto Cinco e íamos até o Leblon. O poeta, Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro, Paulo Mendes Campos. Eu também, claro. Havia moças, mas a data remota manda lhes calar os nomes. "Bicicletai, meninada" – concita o Vinicius, nos seus "trint'anos", como diz. Curioso é que há versos que permitem uma leitura atual quase profética. Senão leiam: "Bem haja a vossa saúde/ À humanidade inquieta/ Vós cuja ardente virtude/ Preservais muito amiúde/ Com um selim de bicicleta". Viu tudo, o Vinicius.

Ato demasiado humano


Donos de livrarias pequenas do Rio contam como lutam para manter os negócios na pandemia

A reabertura do comércio de rua do Rio, no último dia 27, trouxe uma série de dúvidas para os livreiros. Como lidar com o medo dos clientes de se contaminarem com os produtos? Como driblar o movimento baixo e acomodar os frequentadores em espaços reduzidos? Como reinventar o seu negócio em meio à crise? Para os que optaram em manter as portas fechadas mesmo com a autorização da prefeitura para retomar as atividades, o dilema é ainda mais básico: quando voltar?

Antes mesmo da Covid-19, as livrarias já sofriam com a crise no setor. Mas, enquanto as megalojas fechavam, as menores mostravam um novo caminho, promovendo eventos e um tratamento diferente com o leitor. Acontece que tudo isso foi colocado em xeque com a pandemia. Empresas consideradas cases de sucesso, como a Blooks, com seis lojas (três no Rio, duas em São Paulo e uma em Niterói), estão sofrendo para se manter (aliás, a Blooks acaba de abrir financiamento coletivo: benfeitoria.com/blooksresiste).

Com a pandemia, parei de ver (a livraria) como um negócio e voltei à marca de 25 anos atrás, quando comecei no mercado editorial e achava que os livros podiam mudar o mundo. Não é mais uma planilha, são os nossos sonhos
Martha Ribas (Janela)

As histórias que contamos aqui dão noção da dificuldade em manter um negócio de livros em tempos de coronavírus. Optamos em retratar o cotidiano de cinco livrarias que possuem apenas uma loja. Tem de tudo um pouco: um espaço recém-inaugurado (Janela), uma loja icônica que se confunde com a trajetória da cidade (Leonardo da Vinci), a namoradinha da intelectualidade carioca (Folha Seca), um sebo tradicional (Berinjela), e um símbolo da resistência local (Beco das Letras). Em comum, drama, luta (muitas vezes solitária) e um amor incondicional pela profissão.

Daniel Chomski (Berinjela)
Assim que anunciou que estava fechando temporariamente a Leonardo da Vinci naquela tarde de 18 de março, Daniel Louzada caiu no choro. Mas, mesmo consciente da gravidade do momento, ele não imaginava a carga emocional que ainda o aguardava.

— Os quatro últimos meses administrando a livraria em meio a uma pandemia me ensinaram tanto quanto os 22 anos como livreiro — diz o dono da tradicional casa do Centro do Rio, fundada em 1952 e adquirida por ele em 2016.

Para além dos dramas financeiros, Louzada teve uma dura luta com a solidão e a saudade. Como contou em um post no blog da livraria, sentiu falta “das pessoas que conheço e não conheço, do cheiro do café, das conversas, das interrupções, da casa cheia e dos debates, do homem que invadia a loja esbaforido”. O post viralizou na semana passada, e o livreiro recebeu mensagens do Brasil todo, e até mesmo uma doação de álcool gel de um grupo de professores da UFRR. Como uma orquestra de um homem só, lidou com a multiplicação das tarefas burocráticas, das novas exigências das vendas on-line (estas últimas ajudaram a pagar contas básicas). A livraria não parou totalmente no período em que ficou fechada, mas viu seu faturamento cair 60%. Desde a sua reabertura, no último dia 6, o movimento segue baixo. A antes movimentada galeria da Avenida Rio Branco em que funciona é agora vista por seu dono como “uma cidade fantasma”:

— Não tem mais aquele cliente que vem flanar. A vivacidade e o diálogo, tudo aquilo que uma livraria permite, sumiram de uma vez só.

Mesmo operando no limite, Louzada se inspira na história gigante da livraria, que já sobreviveu a crises financeiras e até à perseguição da ditadura em outras administrações.

— Me apoio nos ombros dos gigantes que estavam aqui antes. Vem daí a minha força: é a ligação com os livros.

A pandemia pegou no contrapé as sócias Leticia Bosisio e Martha Ribas, donas da Janela. Elas abriram a livraria do Jardim Botânico no dia 13 de março, dias antes do decreto emergencial que levaria ao fechamento do comércio do Rio de Janeiro. Um grande balde de água fria, não apenas por interromper bruscamente o negócio recém-inaugurado, mas por também inviabilizar todo o conceito que o originou. Nascida em meio à crise de megarredes como Fnac e Saraiva, a Janela chegou propondo um modelo diferente, privilegiando o encontro e a curadoria refinada. Seu diferencial estava nos eventos e espaços de lazer. O clima caloroso que se seguiu aos primeiros dias da inauguração, com o café lotado, área para brincadeiras infantis e um auditório para 30 pessoas, era o avesso do isolamento social.

— Quando abrimos uma livraria, sabíamos que era uma luta, mas uma luta viável — diz Leticia. — A pandemia mudou tudo. Vínhamos num pique ótimo nos primeiros dias, só que o modelo ficou inviável.

Após um período alternado entre ansiedade e respiro, a livraria reabriu na última segunda completamente reinventada. Boa parte da clientela ainda tem medo de entrar e prefere ficar na calçada. Outros têm medo de beber o café da casa na xícara e preferem no plástico. A área infantil e o auditório estão fechados. Para piorar, as máscaras dificultam a identificação dos habitués. Mas o entusiasmo das proprietárias é o mesmo.

— Com a pandemia, parei de ver como um negócio e voltei à marca de 25 anos atrás, quando comecei no mercado editorial e achava que os livros podiam mudar o mundo. Não é mais uma planilha, são os nossos sonhos — diz Martha.

Nos últimos dias, Rodrigo Ferrari vem tentando colocar em prática um esquema digno de federação de futebol profissional. Tudo pela volta do time da Folha Seca, que realiza peladas com os amigos da livraria homônima.

— Antes de cada pelada os jogadores precisam responder questionários para saber quem pegou Covid ou não. E também estamos querendo comprar termômetros para medir a temperatura de todos — diz Ferrari, que há 17 anos toca o estabelecimento no número 37 da Rua do Ouvidor (entre 1998 e 2003, ele funcionou no Centro de Arte Hélio Oiticica).

Calma, leitor. A pauta aqui continua sendo a volta das livrarias, não a do futebol. Mas é impossível falar da Folha Seca sem tratar também das outras atividades que gravitam em torno dela. Ao longo dos anos, a casa virou ponto de encontro da intelectualidade carioca ao promover rodas de samba, lançamentos de livros e, claro, peladas. Não é preciso dizer, portanto, que a pandemia atingiu a própria razão de ser do estabelecimento, fechado desde 18 de março. Ferrari planeja reabrir a casa em algum momento da semana que vem, mas sabe que as coisas não voltarão iguais.

— Pelo que tenho acompanhado do comércio na região, o movimento anda bem fraco — lamenta.

Símbolo da livraria “presencial”, a Folha Seca começará a se voltar também para o virtual. Um pouco na marra, diga-se de passagem.

— Meu site está em construção há 20 anos — brinca Ferrari. — Sempre fui da rua... Mas agora será inevitável reforçar as vendas on-line.

Enquanto não incrementa o site, o livreiro se vira para entregar os pacotes que vendeu antecipadamente num crowdfunding. A campanha aliviou a barra financeira, mas agora são muitos os livros e discos que precisam ser enviados aos que ajudaram. O livreiro também se ocupa com as vendas das obras de sua editora homônima.

— A pandemia não atingiu apenas as livrarias. A preocupação é com toda a cadeia do livro, das gráficas ao distribuidor. Todos estão sofrendo.

Daniel Chomski cansou de ouvir alguns termos clichês da pandemia. O dono da Berinjela, tradicional sebo que existe desde 1994, na Rio Branco, não quer saber de “novo normal”. Mas admite que precisou se “reinventar” nos últimos meses, ampliando ainda mais as vendas online e o serviço de delivery através de marketplaces como a Estante Virtual e a Amazon. Sua vantagem, acredita, é ter começado esse movimento bem antes da Covid-19.

— Se, antes da pandemia, eu não tivesse montado uma equipe básica para atender serviços de venda on-line e delivery, teria ficado para trás — avalia Chomski. — Seria muito mais difícil reverter a situação. Eu só consegui me manter porque intensifiquei o que já fazia antes.

No dia 29 de junho, o livreiro reabriu a casa sob cuidados especiais (ele mantém um funcionário apenas para higienizar os produtos) e pouco movimento. A falta maior é daquele cliente que aparece para procurar um livro ao acaso, o famoso flaneur de sebo. Hoje, quem cruza a porta é aquele leitor que já sabe o que quer e vem fazer uma compra rápida. A rotina vai sendo retomada aos poucos, “com muito carinho”, conta o livreiro. Muitos habitués aproveitam para contar histórias sobre perdas familiares. Já a procura por livros sobre fim do mundo e epidemias aumentou.

Enquanto não revive o ambiente da pré-pandemia, Chomski tem apostado nas redes sociais para divulgar as vendas on-line.

— Não basta fotografar um monte de livro e postar. Tem que ter um trabalho de curadoria — defende.

Para ele, a pandemia desnudou uma realidade do mercado brasileiro:

— O comércio varejista não se prepara para crises. Porque ele, no geral, não tem como se preparar. Dessa vez, infelizmente, nos defrontamos com algo que, para muitos, está acima de qualquer possibilidade de reação.

O mundo da livreira Rita Peixoto desabou. E de forma quase literal: dias antes da pandemia virar uma realidade no Rio, o teto da sua livraria caiu, castigado por chuvas torrenciais que duraram todo um fim de semana. A obra para recuperar a Beco das Letras, instalada desde 2014 no segundo andar de um sobrado na Cruz Vermelha, custou 60 mil reais à proprietária. Rita precisa pagar a última parcela ainda em julho, após quase quatro meses fechada por causa do surto de Covid-19. Desde segunda-feira, a livraria voltou a funcionar à “meia porta”, com a clientela atendida do lado de fora.

— Voltei quebrada — lamenta Rita. — Já estava ferrada de dinheiro, tentando projetar coisas para poder reverter, e aí veio mais essa.<

Livraria essencialmente voltada para a comunidade local, a Beco das Letras só sobrevive graças a uma rede de amigos e habitués, que durante a pandemia tem ajudado a loja com divulgação e boca a boca. Tudo funciona de uma maneira afetiva e pessoal. Os funcionários são pessoas próximas da dona, o que só dificultou na hora de cortar o salário durante o fechamento.

Não é, claro, o primeiro momento difícil enfrentado pelo Beco das Letras. Mas é, segundo a Rita, o pior da sua história. Em 2013, ela se mudou do seu endereço original, na Urca, em função da crise imobiliária. Com isso, trocou um espaço de 30m2 para outro de 140m2, onde passou a promover os saraus e lançamentos que se tornaram a maior fonte de lucro da empresa.

Com o fechamento, Rita passou a depender exclusivamente de entregas na região.

— Tem que repensar em como dar conta de tudo, mas a vontade mesmo é de ficar trancada em casa, sentadinha na cama, esperando passar.

sábado, julho 18

À sombra

Bianca Bagnarelli

São Paulo: 1945

"...Cavalo e carroça na esquina carregados de uva (a pata batendo toc-toc no paralelepípedo), o italiano e a balança enferrujada, dava para escrever o nome na poeira branca que cobre as uvas; ladeira com sombra e carrinho de madeira de roda quebrada (escrito com carvão: sai da frente!), o fícus caído: aquela resina branca que vira preta na palma da mão. No fim da ladeira um mato e o quartel; no mato, um tico de rio, raso, barrento e pobre de rãzinhas pretas e aflitas que se batem numa lata de manteiga cheia de água de torneira (o reflexo gorduroso que você carrega pingando ladeira a cima). Um barro cinza que é para esculpir o rosto da tia (guardado na garagem sem carro e cheia de garrafas, jornais, poeiras e frascos com águas coloridas: refresco de bala e papel crepom). Colher frutas que não se comem, quentes e verdes, correr com elas apertadas entre as bolas de gude no bolso: saquinhos de feijão que caem na calçada: primeiros pingos de chuva na rua, pingos enormes de moeda de quatrocentão (esperar a enxurrada se formar no bueiro da ladeira, ir lá pegar no jorrar). As pedras que caem: escolher uma mais redonda que as outras, errar de dedos cortados ao fazer atiradeira, a topada no asfalto, o joelho esfolado (como se bate e como se cicatriza e como é rápida a ferida). O homem das cabras na porta vendendo leite: o leite é ruim, as cabras são boas. A garoa, a chuva de tarde: do cimento quente emana um respirar úmido de corpo. Entrar suado no ladrilho fresco e rubro da cozinha e à beira da pia, fumegando com bala de coco derretida, pedir rindo (a cara é de quem vai dar e não pedir): água, Maria, água. E a água a escorrer (como tudo escorre) fininha do filtro: seu gosto é de sombra e eco, e um pingo de pedra de riacho: faz um sininho na boca. Voltar à rua, sentar no meio-fio, olhar com inveja o operário que ao lado, com a mão, come bolinhos de carne. Meio-dia, apito, meio-fio. Catar pedaços de madeira na loja do japonês, roubar um prego, com ele escavucar o nome no tronco da árvore no meio da vila branca. No fundo do bolso encontrar a bala melada, a figurinha amassada, correr até o empório, cuspir na serragem, desabalar na ladeira (como há ladeiras) a moeda a brilhar na mão, trocá-la pelo sorvete, tocar com a testa o sorvete de abacaxi, lambuzar as mãos, levá-las pegajosas á poeira e nunca mais tomar banho de limpar, mas são de refrescar. Mas na hora do banho descobrir que o banho é bom. E não querer deitar. Mas descobrir que o deitar é bom. E amanhã acordar, para descobrir que o acordar é bom, que trará as ladeiras e os focinhos molhados dos cães, e as cordas e amarrá-las: os pés descalços de novo na terra fincar. E correr e correr e correr: como se no planalto estivesse para sempre empinado na crista de uma onda, que nunca se estoura, atravessada pelo sol, encrespada em azuis, atrás de uma bola, a pular, a girar, a quicar sem parar, sem parar, sem par...ar: ah!: ah!: verão, visco, ponto e exclamação. Grito e pulmão. Tudo escorrega e cai, tropeça, topa, derrete e mela. Sobe e desce, desce e sobe: que menino meu Deus! Já pra dentro! Ti-tôooo! MA-nhêeee!...