quarta-feira, abril 21

Assim começa...

Cá estou eu, Steinn. Foi um milagre revê-lo. E justamente lá! Você ficou tão pasmo que quase tropeçou. Não foi — não pode ter sido — um “encontro casual”. Havia forças operando naquele lugar, forças! 

Conseguimos roubar quatro horas para nós. Mas o que é “roubar” quatro horas? Niels Petter não achou a menor graça. Só em Førde dignou-se a me dirigir a palavra. 

Nós simplesmente subimos o morro a partir do vale. Meia hora depois, estávamos diante do bosquezinho de bétulas. Outra vez... Não dissemos uma palavra no caminho. Sobre aquilo, digo. Falamos de tudo, mas daquilo não. Tal como antigamente. Não fomos capazes de nos posicionar quanto ao acontecido. E assim nós fomos para o brejo, talvez não você enquanto você, nem eu enquanto eu, mas nós dois enquanto nós dois. Não conseguimos nem mesmo trocar um boa-noite. Lembro que passei a última noite no sofá. E me lembro do cheiro do cigarro que você fumava sentado no outro cômodo. Através da parede e da porta fechada, cheguei a ver a sua cabeça inclinada. Você ficou lá, debruçado na escrivaninha, fumando. No dia seguinte eu parti, e nós não voltamos a nos ver. E lá se vão mais de trinta anos. Não dá para entender.

Mas eis que acordamos subitamente de anos de sono de Bela Adormecida — como que sacudidos pelo mesmo sinal milagroso. E, independentemente um do outro, tornamos a nos hospedar lá. No mesmo dia, Steinn, num outro século. Num mundo inteiramente novo. Caramba, depois de mais de trinta anos.

E não me diga que foi mera casualidade. Não diga que não foi orquestrado!

O mais surrealista foi a dona do hotel aparecer subitamente na varanda, ela que naquele tempo era a jovem filha da casa. Também para ela passaram-se trinta anos. Acho que essa foi a grande experiência de déjà-vu da sua vida. Lembra o que nos disse? Que bom saber que vocês continuam juntos, foi o
que disse. Essas palavras doeram. Mas não deixaram de ter graça, já que a mulher não nos via desde aquela manhã, na metade dos anos 1970, em que ficamos tomando conta das suas três filhinhas. Esse favor nós lhe fizemos porque ela nos havia emprestado duas bicicletas e um rádio portátil.

Agora estão me chamando. Afinal de contas, é uma noite de julho e aqui no litoral se vive em regime de veraneio. Acho que estão grelhando trutas, e Niels Petter acaba de me servir um schnaps. Deu-me dez minutos para terminar o e-mail, e eu preciso mesmo desses minutos, pois quero lhe pedir uma coisa importante. 

Será que nós podemos prometer solenemente apagar todas as mensagens assim que as tivermos lido? Quer dizer, de imediato, sem demora, e, obviamente, nem pensar em ligar a
impressora.

Imagino este novo contato como uma vibrante corrente de pensamento entre duas almas, não como uma correspondência que, digamos, há de ficar eternamente entre nós. Assim a gente fica mais à vontade para escrever sobre tudo.

À parte isso, os dois, cada qual por seu lado, somos casados, temos filhos. Não gosto da ideia de deixar tudo no computador.

Não sabemos quando há de ser, mas um dia nós iremos embora deste carnaval cheio de máscaras e papéis, legando apenas alguns bens passageiros que depois também serão varridos.

Somos obrigados a sair do tempo, disto que chamamos “realidade”.

Os anos passam, mas me tira o sossego a ideia de que parte daquilo que sucedeu pode surgir de repente. Às vezes sinto que uma coisa me persegue, está nos meus calcanhares.

Não esqueço a barra sinalizadora da polícia em Leikanger e ainda estremeço quando vejo uma radiopatrulha atrás do meu carro. Uma vez, há alguns anos, um policial fardado bateu à minha porta. Deve ter percebido o susto que levei. Mas ele só queria informação sobre um endereço no bairro.

Você certamente acha que é uma preocupação inútil. Mesmo porque a coisa decerto já prescreveu juridicamente.

Mas o sentimento de culpa não prescreve nunca...

Prometa que vai apagar tudo!

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