domingo, abril 11

Círculo do Livro

O chope comia solto no Genial, bar da Vila Madalena, quando o Marcelino Freire nos disse: “Assim que cheguei em São Paulo, o que eu queria mesmo era trabalhar de revisor no Círculo do Livro”. Foi uma daquelas frases que servem como anzol e pescam lembranças remotas, soterradas pelo passar dos anos.

Fui sócio do Círculo do Livro. Quase todos os meus irmãos eram também. No subúrbio, onde livraria é coisa tão rara quanto brisa de mar, o Círculo nos dava acesso a clássicos e novidades da literatura sem que precisássemos sair de casa. Funcionava assim: cada associado recebia mensalmente uma revista, que relacionava os lançamentos e títulos do catálogo. A cada número da revista, uma obra deveria ser comprada.

Os livros tinham preços bem mais em conta do que nas demais editoras e vinham em embalagem caprichada. Capa dura, encadernamento perfeito, miolo bem diagramado. Não esqueço o dia em que, após levar uma bronca da mãe, minha irmã Sandra me chamou em seu quarto e leu Flicts para mim. Uma publicação do Círculo. Minha irmã já se foi, não tenho ideia de onde o livro, que era dela, foi parar, e nunca mais encontrei aquela edição. Mas fora das páginas as cores não esmaeceram. São minha lembrança mais feliz da Sandra.

Bruno Schier

O Círculo mantinha, em seu catálogo, uma saraivada de best-sellers: Sidney Sheldon, Agatha Christie, Morris Welst, Harold Robbins, Jorge Amado. Apresentou-me autores como Albert Camus, Marguerite Duras e Zélia Gattai. E sempre abriu espaço para apostas. Como André Torres, preso político que fez algum barulho nos anos 1980 ao relatar sua experiência no cárcere. Exílio na Ilha Grande e Esmaguem meu coração, suas duas obras mais famosas, permanecem na estante lá de casa. Conservo-as como emblema de meus primeiros espantos.

“Troço fantástico os livros chegando via Correios, e logo ali no bairro pobre de Água Fria, onde eu morava”, contou o Marcelino no papo do Genial. Do Rio para Pernambuco, o mesmo sentimento. A mesma ânsia juvenil em checar a correspondência à espera de uma pequena caixa de papelão. Ou mesmo da revista, com suas pequenas resenhas que anunciavam o futuro nos livros que iríamos ler.

“Se não fosse o Círculo, possivelmente não haveria livros lá em casa”, comenta minha namorada Juliana Krapp, que morou em Cascadura e também estava à mesa do Genial. Ju era bem menina, mas guarda a alegria de folhear a revista do avô. Certa ocasião, sua família comprou uma seleta de contos escritos por crianças como ela. Incentivada por aquelas histórias, a hoje poeta e jornalista tomou coragem para arriscar o primeiro texto.

O Círculo chegou a ter 800 mil sócios, vendeu mais de 17 milhões de exemplares e encerrou as atividades, já deficitário, na década de 1990. Os números, impressionantes, talvez escondam o maior feito. Foi por intermédio de seus livros que eu – assim como o Marcelino, a Ju e tantos outros – comecei a perceber que a vida podia ser maior do que a casa dos meus pais. E a literatura, por vezes, uma insuspeita brisa de mar na abafada Madureira.

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