quinta-feira, abril 8

Um sítio sem linguagem nem ruas

Metade da manhã já passou e, entretanto, o sol abriu. Vindo da serra, o Pedro chega com um enorme ramo de flores, A paisagem começa a encher-se de cor, anuncia satisfeito. São mimosas, diz a minha mãe depois de agradecer as flores e de lhes elogiar a beleza, Mais uma primavera, murmura indecisa, como se fizesse uma conta difícil.

Comoveu-me que o Pedro nos tivesse trazido bolinhas amarelas e alegres empoleiradas em longas hastes. Inexplicavelmente deu-me para esclarecer que as mimosas, as árvores de que o Pedro colhera flores, são uma espécie invasora, tendo chegado a Portugal há menos de um século, trazidas da Austrália. Logo eu que não percebo nada de botânica, que vou alimentando o meu conhecimento acerca de quase tudo como se ainda lesse as Seleções do Reader’s Digest. As mimosas dão-se bem em terras queimadas, sobrevivem quando o fogo as ataca ou mesmo quando são cortadas. Só se consegue matá-las dando-lhes um golpe profundo no tronco, esventrando o que não tem ventre. Então secam e morrem de pé. Uns esqueletos tristes presos à terra. O Pedro surpreende-se com a minha reação às suas flores primaveris, mas sorri, Estás a falar com a linguagem dos homens, brinca, devias pensar como a natureza, Isso se calhar é mais não pensar, replico. Na natureza não há espécies invasoras, o que existe, existe e pronto. Sabes coisas de mais, saber de mais pode ser tão prejudicial como saber de menos, acrescenta. A minha mãe acena com a cabeça, Ela foi sempre assim. Pois, imagino, remata o Pedro.

Aparo as mimosas na bancada da cozinha. Estou de costas para a minha mãe e para o Pedro, enquanto eles escolhem as jarras para colocar as flores. Não fiquei ofendida, mas inquieta-me o que quer dizer Ela foi sempre assim e Pois, imagino. Aparentemente a despropósito, uma outra frase começa a fazer o seu caminho na minha cabeça, Mrs. Dalloway disse que ela própria ia comprar flores. As flores que a Mrs. Dalloway compra para a festa que vai dar na sua casa de Westminster, nessa noite de junho de 1923, e as que tenho nas mãos misturam-se como se pertencessem à mesma realidade.


Procuro o romance da Virginia Woolf nos caixotes de livros que trouxe de minha casa. Muitos desses caixotes continuam fechados, aguardando espaço nas estantes que estou a improvisar na parede do fundo do último andar. Já despejei alguns livros de forma baralhada nas prateleiras de baixo. Isto angustia-me. Vivo cada vez mais provisoriamente, quase me ouço dizer. Respondo-me pela voz do Pedro, que aparece entretanto, Só a morte é definitiva, a vida é provisória por natureza. Ajuda-me, peço-lhe. Sei que é quase impossível encontrar o livro entre centenas de outros, mas não desisto. A Mrs. Dalloway está mais perdida neste quarto do que nas suas memórias. Irremediavelmente. O Pedro cansa-se passado pouco tempo, Não podes ler outro livro? Não!, quase choramingo, e ele propõe-se comprar Mrs. Dalloway em formato digital. Explico-lhe que sublinhei o meu livro das várias vezes que o li, só a minha Mrs. Dalloway me permite avistar as outras que fui sendo.

Ela foi sempre assim
Pois, imagino


Desamparada, tento concentrar-me no que estou a escrever: “As palavras falharam. Só elas poderiam ter-nos salvado da tragédia ou de uma tal dimensão de tragédia.” Estou sozinha no último andar, o fantasma da Mrs. Dalloway algures atrás de mim e o resto da casa em barulhos que me chegam confundidos por portas e recordações. “De que nos serve a fúria surda e cega do progresso (para onde, para quê) se”… O almoço está pronto.

Depois do almoço, resolvo despachar as compras do supermercado. Ao sair de casa, conto até quatro, como sempre agora faço, um dedo espetado por cada coisa a não esquecer: chaves, carteira, telemóvel, máscara. São cada vez mais as coisas a não esquecer. Ah, e os sacos das compras. Depois, tal como sempre, direita, direita, direita, sempre em frente até à rotunda, esquerda, direita. Quase uma hora depois, desdobro o caminho feito, de regresso ao texto que me espera no último andar. Esquerda, sempre em frente até à rotunda, direita, esquerda, esquerda, esquerda. Eu, peça de um jogo de tabuleiro.

Escrevo, “O que existe, só existe mal, se soubermos que é possível inventar-lhe outra existência com menos sofrimento; senão o que existe, existe, simplesmente, nem bem nem mal.” Como a natureza de que o Pedro fala.

O sol apouca-se, desço e ponho-me a cavar no quintal. Desenho os carreiros onde plantarei milho, tomate, espinafres, acelgas, coentros, manjericão e o que mais me der na cabeça. Estando o mundo fora do sítio, a minha vida fora do sítio, resta-me abrir caminhos na terra escura.

Troco mensagens com a Rita pelo WhatsApp.
não tarda podemos sair à vontade
ir onde quisermos
nunca pensei sentir tanto a falta de gente


aparece escrito no ecrã do meu telemóvel. Não consigo partilhar aquele entusiasmo e respondo com um smile ao meme de uma gata com óculos de sol numa esplanada. A Rita, dando conta do meu comedimento, pergunta, antes de se despedir, Não estarás a ficar deprimida?

Ela foi sempre assim
Pois, imagino


A sala está finalmente vazia. Sento-me no sofá. A minha mãe já deitada, o Pedro no escritório a trabalhar no fuso horário dos Estados Unidos da América, onde viveu mais de 40 anos. Ligo a televisão para ver Allen vs. Farrow. O Pedro pensa em inglês. Quando foi para os Estados Unidos da América, aos 9 anos, por certo pensava em português. Agora, quando fala comigo, procura na memória palavras entorpecidas e só consegue entregar-me uma tradução de si mesmo. Desisto de ver o documentário. Acontece-me o mesmo com o filme A Pereira Brava. Vou vendo trailers, uns atrás dos outros. Detenho-me no de Paris, Texas e lembro-me do Travis a contar-se à Jane como se ele não fosse ele,
– E, pela primeira vez, desejou estar muito longe. Perdido num profundo e vasto país onde ninguém o conhecesse. Um sítio sem linguagem nem ruas.

Decido que amanhã vou com o Pedro à serra. Em vez de ficar a ler no carro, como tantas vezes acontece, subirei com ele pela encosta. Eu própria colherei as flores.

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