sábado, abril 3

Viver, sobreviver

E agora, aqui, enquanto escrevo, lembro-me daquele homem que encontrámos debaixo de uma arcada da avenida Almirante Reis, a escrever. Debaixo de pouca luz, tinha um molho de folhas no colo e uma esferográfica que deslizava pelo papel com toda a velocidade. Eu escrevo bastante devagar, sempre foi assim, e impressionam-me as pessoas que escrevem depressa. Era um homem de sessenta e tal anos, sentado numa pilha de malas velhas onde, presumo, estava tudo o que possuía. Já lhe tínhamos entregue o saco de papel com duas sandes, duas maçãs. Eu tinha um pacote de leite na mão, que recusou. Enquanto a voluntária conversava com ele, eu espreitava ao longe para o manuscrito que o homem tinha esquecido no colo e, indiscreto, tentava decifrar algumas palavras, frases. Não vou contar o que li. O homem tinha o olhar parado e os carros desciam a avenida como se apenas existissem noutro lugar.

Antes, às oito e meia da noite, à hora combinada, era eu que procurava a sede da associação. Tive mais de cinquenta aulas de condução naquela zona de Alvalade (chumbei duas vezes no exame) e, mesmo assim, nunca consegui aprender os caminhos daquelas ruas de vivendas. Parecem paralelas, perpendiculares, mas desenham figuras que não consigo perceber. Tinha um mapa desenhado num papel, uma morada e um número para telefonar se fosse necessário. Telefonei e, com todas as indicações, foi só depois de muitas voltas, passagens repetidas pelas mesmas ruas, que, finalmente, cheguei. Os voluntários ainda estavam a chegar. As conversas de ocasião eram sobre a chuva, fina ou grossa, gelada, ou sobre o vento que a empurrava em todas as direções.

Éramos seis na carrinha, três homens e três mulheres. Levávamos um carregamento de sacos individuais com sandes, fruta, levávamos leite e algumas roupas, alguns cobertores. Saímos na direção do Casal Ventoso e, pelo caminho, parámos debaixo de viadutos: homens surpreendidos atrás de paredes de cartão, tábuas, latas. Foi aí que senti pela primeira vez o cheiro. Cresci no campo, em cima de árvores, com arranhões de ramos. Sei que aquele é o cheiro dos ninhos. É o cheiro do calor e da vida, da transpiração, da comida pronta, quente, ou fria, decomposta.

Chegámos à rua Maria Pia, à Meia Laranja. Tinha estado ali há cerca de vinte anos, voltei pela primeira vez. Felizmente, está bastante diferente. Antes, na ribanceira, havia filas à porta das casas onde se vendia heroína, havia gente a apregoar “bombas” (seringas), havia gente a vender limões e pratas. Hoje, nesse mesmo lugar, há um espaço ajardinado. Começámos a distribuir os sacos de comida e percebi que, afinal, as mudanças não eram tão profundas como parecia. Uma rapariga guardar o saco da comida numa mochila com um grande rolo de prata. Vários rapazes pediram se podiam levar comida para dois companheiros que estava no cubículo. A rapariga tinha os cabelos compridos, encharcados, e não sentia a chuva. Os rapazes tinham a barba comprida, os cabelos compridos, encharcados, e não sentiam a chuva.

Na Almirante Reis, ao aproximarmo-nos, o homem escrevia depressa. Não parou assim que chegámos. Estava absorto numa ligação direta entre o que pensava e o que escrevia. Eu, que não estou na rua, sem vento, sem chuva fria, custa-me encontrar cada palavra. Às vezes, fico parado durante minutos entre uma frase e outra, sem posição. Outras vezes, duvido se devo continuar um parágrafo ou interrompê-lo. Sob aquela arcada da Almirante Reis, o texto do homem parecia não ter parágrafos ou pontuação. Não era constituído. Era uma linha que parecia existir desde sempre e para sempre. Viver, sobreviver. Era uma forma contínua de respiração.

José Luís Peixoto

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