Não, não te apiedes de quem morre. Porque a piedade supõe uma condição de superioridade e a gente só se pode compadecer de quem sofre mais do que nós. Porém saberás se não vais sofrer muito mais do que aquele que estás vendo morrer, se a dor do teu próprio trespasse não te vai ferir muito mais fundo e com horror muito maior do que o seu próprio trespasse o feriu a ele? Vês o morto e logo o imaginas distante e diferente, um estranho; no entanto a coisa única que te separa dele é uma questão de tempo – que pode ser apenas de minutos ou de horas. E então onde está a tua vantagem? Por que razão ter pena de quem talvez foi mais feliz do que tu? O teu instinto é te considerares imortal e invulnerável. Mas talvez no momento em que recuas com horror diante do corpo frio de alguém que tu conheceste ou amaste – talvez nessa hora o mal que te vai consumir já esteja incubado no teu corpo, ou o automóvel que te vai matar já esteja rodando para o fatal encontro, ou a água que te vai afogar te espere uma armadilha, dez passos além. Choras com desespero o teu morto, parece-te que aquela coisa horrenda e única só lhe sucedeu a ele, que é uma espécie de privilegiado da fatalidade. Ora, deixa em paz o morto. Quem sabe a sua parte foi mais branda do que será a tua? Ele afinal correu o seu caminho, venceu a sua etapa; prepara-te pois para a tua e vê se sairás dela tão galhardamente, tão silenciosa e discreta e humildemente quanto ele se saiu da sua. Não, não tenhas pena. Também não tenhas medo – melhor é te habituares com a ideia. Nem te suponhas garantido porque és moço, porque és forte, porque és são. A vida é como um gás volátil, tem tendência a se expandir e sumir-se; não importa a robustez do vaso, sempre dá jeito de encontrar uma fissura por onde fugir.
Mas se te digo que não tenhas medo da morte é principalmente porque a morte é estado tão natural quanto a vida – ou mais natural ainda. A vida é simplesmente um meio, enquanto a morte é um fim em si. Se nascemos para alguma coisa, se há uma lei comum regendo o nosso fim neste mundo, não há de ser para triunfar que nascemos, porque nem todos triunfam, nem para gozar porque a maioria o que faz é sofrer, nem para amar apenas, nem para ser bispo ou para ser soldado, nem para o bem nem para o mal: nascemos todos e vivemos poucos ou muitos anos do nosso lote com o fim único de morrer. Outra coisa não é a vida senão a preparação desse fim – e a cada dia que passa, pensamos que estamos crescendo, ou engordando, ou aprendendo inglês, ou ficando calvos, ou nos tornando ricos – mas na verdade estamos é consumindo mais um dia, mais uma semana, mais um mês, e nos aproximando cada vez mais do prazo, chegando cada vez mais perto do termo da nossa obrigação ou da nossa caminhada.
O mal é se traçar essa barreira de pavor entre mortos e vivos, como se separação real houvesse realmente entre vida e morte. Quando afinal o morto é apenas o vivo que concluiu o trabalho de viver, o vivo acabado de aprontar para a morte. Que a última demão é justamente aquilo: a imobilidade e o silêncio. O que não foi no princípio e que torna a ser igual o que não é do fim.
Rachel de Queiroz, O Cruzeiro, 16/10/1948
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