Quando eu tinha apenas catorze anos, perdi o meu irmão mais velho, que tinha dezasseis. Foi o meu primeiro grande encontro de frente com a morte e foi um abalo de grandes dimensões. Salvou-me, como verdadeira purga, a leitura, entre outras coisas, de alguma tragédia grega e do livro do poeta Luciano, sobre o luto. Ésquilo e Sófocles, mergulhando-me no grande mundo trágico, não me deprimiram, pelo contrário, levantaram-me. E o ensaio de Luciano, falando-me da morte com naturalidade, permitiu-me finalmente meter “a bordo” que morrer é parte do viver. O grande pensador e aforista francês, La Rochefoucauld, dizia, num aforismo célebre, que nem o sol nem a morte se conseguem olhar de frente. Com a ajuda desses grandes perscrutadores dos abismos da condição humana, aprendi a encarar de frente a morte como termo natural da vida. Fiquei a dever-lhes uma incomensurável dádiva.
O meu livro – VAMOS LER! – que anda por aí a circular com gratificante acolhimento pretende, não só falar dos grandes préstimos da leitura, mas também oferecer uma primeira lista de autores e livros que possam servir de aliciante “isca” para o leitor relutante. Tenho, no livro, o cuidado de dizer que não fiz uma escolha exaustiva e que não incluí alguns grandes autores portugueses (a minha lista só inclui autores portugueses), por me não parecer que se deva avançar um projecto como o meu, com textos de mais difícil acessibilidade. Em bom português de mangas arregaçadas, diria que não é com vinagre que se apanham moscas. Ora aqui é que se começaram a promover alguns equívocos. As pessoas tendem muitas vezes a ler, nos textos, não o que lá está mas o que elas neles querem ou julgam ver. Eu aviso, desde o início, com clareza e lealdade, que o cânone que proponho não é muito longo (para não assustar) e não inclui alguns grandes nomes como Fernão Lopes, Aquilino Ribeiro ou Vitorino Nemésio (sempre para não assustar). Estes grandes autores ficam para mais tarde, quando o meu leitor relutante se tiver convertido em leitor viciado (assim o espero). O pior que pedagogicamente se pode fazer é dar a ler a gente pouco experimentada certos grandes autores na altura errada. Era o que acontecia, no meu tempo de estudante, quando davam o Auto da Alma, de Gil Vicente, a alunos de catorze anos. Um verdadeiro disparate! (Ainda se fosse o Auto da Índia ou A Farsa de Inês Pereira, vá lá, embora a linguagem de mestre Gil, ainda com um pèzinho na Idade Média, possa confundir o leitor impreparado). Nada pode fazer tanto mal a um grande clássico, como dá-lo a ler prematuramente. Como, infelizmente, a escola tem feito isso o tempo todo – e não só em Portugal – o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, dizia que gostaria de ter poderes legais para proibir a toda a posteridade a utilização das suas admiráveis peças de teatro, nas escolas. Por uma razão: por querer continuar a ser lido e por saber que as escolas eram as principais responsáveis por os alunos detestarem certos grandes autores. E continuarem a detestá-los por toda a vida. Eu não quero matar, nas pessoas que ando a querer convencer de que ler é bom, esse gosto de ler, pondo-as demasiado cedo diante de certos autores. O meu livro não é uma exibição parola dos meus gostos alevantados. Por isso não convido o meu leitor relutante a começar por Fernão Lopes ou Gil Vicente ou Aquilino Ribeiro ou Vitorino Nemésio ou Mário Cesariny ou Herberto Hélder – porque seriam escolhas desastradas e um mau serviço prestado a estes grandes autores e ao leitor que pretendo aliciar. Por isso, peço aos meus amigos que me têm inquirido sobre certas ausências, que leiam com atenção o meu livro. Por outro lado., não incluí no meu cânone, autores que muito admiro e são de leitura acessível, por uma razão muito simples: porque não cabem: o meu limite eram 50 obras de 35 autores. Quando um aluno engraçadinho perguntou um dia ao meu inesquecível professor de Ciências Geográficas, Cardigos dos Reis, por que razão o sol não ficava nunca entre a Terra e a Lua, ele respondeu-lhe, arregaçando uma sobrancelha cáustica: “Olhe, menino, além do mais, porque não cabe.” Portanto, se me perguntarem por que não incluí, por exemplo, a grande Florbela Espanca, a minha resposta é curta: “Porque não coube.”
Outro ponto da minha escolha que desassossegou não pequeno número de amigos meus (o que não será dos que não são meus amigos!) foi a escolha de Miguel de Sousa Tavares e de Rosa Lobato Faria, muito mais ele do que ela. O problema será menos o alegado feitio um bocado afrontoso e sem papas na língua do autor de Equador. E o defender, por vezes, pontos de vista muito controversos. Porque eu creio que a principal objecção é o livro ter-se vendido muito bem e ser de extrema aliciante leitura. Aqui, entramos no reino do preconceito: como se um livro de grande entretenimento não pudesse ser boa literatura. Por acaso, até acho que os romances de Dickens, Charlotte e Emily Bronte, George Eliot, Joseph Conrad, Stendhal, Balzac, Benjamin Constant, Choderlos de Laclos, Zola, Tolstoi, Dostoiewsky, Turguenev, Mark Twain, Steinbeck, Pirandello, Camilo, Eça e muitos outros são de enorme qualidade literária e dotados de grande poder de entretenimento. Este poder até lhes não faz mal e é um excelente veículo para transportar outras eminentes virtudes que eles também têm. A este respeito, o grande romancista alemão, Thomas Mann, num belíssimo ensaio intitulado “O artista e a sociedade” faz uma troça descabelada daqueles que dizem haver duas espécies de arte: uma com “a” minúsculo e outra com “A” maiúsculo. Começa por se apoiar em Goethe, dizendo, com malícia, ser “impossível contradizê-lo quando ele dizia que a missão da arte era ser um animador, em todas as acepções do termo, e nada mais.”
Depois, o autor de Morte em Veneza, vai ao ponto de contar, deliciadamente, o seu encontro em Estocolmo com a escritora sueca Selma Lagerlöf, quando, em 1929, ali foi receber o Prémio Nobel, atribuído ao seu romance Buddenbrooks. A grande escritora, que fora também laureada com o Prémio, ficou sentada ao lado de Mann, num almoço, e este aproveitou para lhe dizer quanto admirava a sua obra e salientando a extraordinária carreira mundial da saga de Gosta Berling. Humilde, a grande escritora observou que os seus livros tinham sido escritos apenas para entreter os seus sobrinhos e sobrinhas, visto que não tinha filhos. Deliciado, Thomas Mann confessou-lhe que tinha escrito o seu volumoso romance, que lhe valera estar ali naquele dia para receber o galardão, sem qualquer prurido de grande seriedade: “tinha sido, de começo um assunto e um divertimento familiares, o rascunho quase facecioso de um jovem de vinte anos, não muito conformista, que eu lia aos meus e que nos fazia rir até às lágrimas.” Comparando a carreira mundial de um livro que ele escrevera para entreter os familiares, ao serão, com a idêntica fortuna que obtivera a saga escrita por ela, para entreter os sobrinhos, o grande escritor alemão e a grande escritora sueca riram às gargalhadas naquele memorável almoço. Por isso, nesse mesmo ensaio, o grande escritor alemão alude, de modo provocante, “ao tempo em que a arte [com “a” minúsculo] ainda não sabia que era “a Arte” [ com “A” maiúsculo] e se ria de si própria.” E acrescenta, significativamente, estas palavras que particularmente recomendo à atenção das vestais da nossa praça literária: “No fundo, o artista quereria mantê-la nesse estado. A arte devia, na sua opinião, rir-se de si; e ele, o artista, quereria, pelo seu lado, poder rir-se dela, sempre, em vez de acolher com ar solene as honrarias e dignidades, assim renegando a sua juventude indócil e solitária.”
E por aqui me fico, pensando ter atrás semeado alguns bons argumentos para o meu leitor ler, descomplexadamente, os sonetos de Camões e o romance de Miguel de Sousa Tavares. A verdadeira arte não faz boquinhas e até aprecia o bom entretenimento. Só os patetas empertigados têm medo dele, nem bem sabem porquê.
Eugénio Lisboa
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