Ödön Márffy |
Aqui no Rio, chove e a gente se maldiz. Ousam os nativos dizer que a chuva "estragou" a exibição de fogos na passagem da meia-noite. Mas a velha Chiquinha Rufino é que sabia interpretar essas coisas: "fogo é coisa do diabo, e a chuva é coisa de Deus".
Por mim, não gosto de passagem de ano. Cada ano que se acaba é como se o cortassem de mim. Era meu e não é mais. Eu dependia dele para fazer projetos, marcar viagens, dividi-lo em mínimas porções: "Semana que vem vou a São Paulo, faço isto e aquilo lá (divido as horas e até os minutos em variados compromissos). É como se eu tivesse comprado o tempo para o meu uso.
E como a gente se engana! O tempo é que é o nosso dono, suscita o inesperado, valendo-se das coisas mais íntimas. Até um salto de sapato que se quebra pode impedir o encontro definitivo da sua vida: você não consegue chegar na hora, e a pessoa amada vai embora após a espera inútil, certa de que a sua ausência era a prova definitiva do rompimento. E quando você consegue chegar ao ponto marcado, com duas horas de atraso, a pessoa amada já foi embora, certa de que tudo acabou.
O que estou querendo dizer é que a gente é muito mais joguete das circunstâncias do que se pode imaginar. E estava errada minha avó, quando dizia: "Tudo que Deus manda é para o nosso bem". Primeiro, é até um pecado acreditar que Deus Nosso Senhor, lá do seu trono, no Paraíso, vai se preocupar em quebrar o salto do teu sapato e, por via disso, pôr fim a um caso de amor. Na realidade, na sua maioria, os casos de amor são fora da lei, ou dos costumes, ou dos preconceitos. Deus Nosso Senhor não cuida deles; e, embora os veja se quiser, já que Ele pode ver tudo, deve sorrir paciente, diante das nossas vicissitudes sentimentais e esperar que passem. Ele, mais que ninguém, no céu e na terra, sabe que tudo passa. Aliás, tenho a impressão de que a grande sorte do ser humano, na sua passagem pela vida, é saber que tudo é transitório. A começar pela própria vida, a sua própria existência. Além de tão curta, tão repartida: infância, mocidade, maturidade, velhice, cada capítulo tem sua sorte própria, seus risos, suas dores, seus mistérios.
Mas o curioso é que viver não é um aprendizado. Um velho de cabelos brancos é tão inexperiente e crédulo quanto um menino, diante da vida. Cai nos mesmos tropeços, o menino ao aprender a andar, o velho que já não pode confiar nas pernas para cruzar os passos. E a gente acaba, na vida, no mesmo ponto em que começou. Como a cobra que morde o rabo.
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