Para
João Paulo Moreira
Logo que conheci, tocou-me o coração. Fez lembrar a antiga Salvador. Grandes casas de muitas janelas nas encostas. Ruelas, becos e ladeiras. Tudo é relíquia preciosa nessa paixão secular, a vida aflora em ofícios de outros tempos. Transpira na pele do tempo aderência de seres e coisas numa sequência soberba de raridades arquitetônicas.
Na Alta de Coimbra a rainha do coração da cidade, a Universidade, fundada em 1º de março de 1290. A Torre desponta como o seu emblema e da própria cidade, mal o dia mostra os primeiros vestígios. A mulher no hotel disse-me que um dos sinos, numa das grandes janelas, chamado de “a cabra”, regulou a vida acadêmica e da cidade durante muitos anos. A Torre emerge num sobranceiro barroco, a sobressair na linha dos telhados.
A Biblioteca Joanina distingue-se também na Alta de Coimbra. Obra de artistas portugueses, com o seu portal nobre no exterior, de estilo barroco. Cobertos por sólidas estantes as paredes no interior. Ricamente decorado o andar superior com três amplas salas. Decoradas com talha lacada a verde, vermelho e dourado, comunicam-se entre si por arcos idênticos ao portal que na parede superior ostentam insígnias das antigas Faculdades. Formas arquitetônicas da ilusão impressionam, a revelar o milagre do fazer a vida além da morte, de maneira artística. O edifício começou a ser construído por ordem do Rei D. João V, entre 1716 e 1724. Abriga riquíssimo conjunto bibliográfico mundialmente famoso, superior a trezentos mil volumes.
A cidade cantada nas histórias que encantam guarda uma atmosfera de recolhimento. Altares em formas de tessitura humana artisticamente trabalhada e o órgão barroco. A Sé Velha assenta-se num monumento românico considerado o mais belo de Portugal. Ali, a Igreja de Santa Cruz. Fundada há mais de oitocentos anos pelo primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, foi berço esplendoroso da renascença Coimbrã. Ali, a Igreja de São Tiago e a Praça do Comércio para onde convergem ruas medievais. E o Arco de Almedina e as escadinhas do Quebra-Costas e a Porta Manuelina do Palácio de Sub-Ripas e a Torre do Anto. E a silhueta monumental da Sé Nova e o Museu Nacional Machado de Castro, com suas admiráveis coleções de pintura, escultura, ourivesaria e tapeçaria. E, junto à margem esquerda do rio Mondego, a Igreja de Santa-Clara-A-Velha, abrigo maternal do imponente Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova, onde repousa a Rainha Santa Isabel, a padroeira da cidade.
Estende-se belíssimo manto branco de casario na cidade cruzada por séculos e séculos de história, que aconchega nas serenatas de fado de Coimbra e suaviza em seus beirais floridos. Faz da noite criança adormecida de sono nas cantigas cantadas pelas vozes jovens de As Mondeguinas.
Comoventes vozes, alternância de vagas tristes e remotas, que batem e voltam e batem. No aceno da distância amanheço com esses raios de sol no quarto e vou até a sacada do apartamento no hotel. Ruídos acendem o dia, acontecem em geral com os humanos por todos os pontos da cidade cheia de vida.
Saudade e paixão, saber e beleza, labor e oração. Inteligência que se vê em líquido sentido no espelho real do rio Mondego. À margem o provisório tempo secular ante o eterno que passa por debaixo dos arcos da Ponte de Santa Clara. Melhor sabem isso as andorinhas que trissam no céu azul. Desfiam o vento ameno e propõe sobre os telhados outra manhã de verão.
Cyro de Mattos
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