segunda-feira, abril 5

Injeções

George Leslie Hunter 
Mês passado tomei a primeira dose da vacina e fiquei tão emocionada quanto os demais setentões que ordeiramente esperavam sua vez. Emocionada, alegre e um tanto tensa, pois raramente tomo injeção no braço. Talvez por isso, o local da picada sangrou e ainda apresento uma mancha roxa ali, parecida com a de uma batida. Fora tal senão, nenhuma reação à Coronavac, felizmente.

Fui e voltei de táxi. Os motoristas têm sido meus únicos interlocutores atualmente, já que no supermercado respondo apenas ao que a funcionária pergunta – CPF na nota? Precisa comprovante para o estacionamento? – e ela pouco me olha, ocupada em registrar os preços. Na farmácia, o quadro é parecido. O/a balconista escuta meu pedido, diz o valor, me oferece desconto quando o convênio é válido, recebe o pagamento e se despede. No banco, uso o caixa automático, eternamente mudo.

Com toda essa ausência de diálogos de verdade, a conversa com os taxistas ganha relevo. É com eles que posso trocar opiniões sobre o desgoverno atual, contar que a agulha da vacina talvez pudesse ser mais fina, mas sei que também este material deve estar em falta, como tudo o mais que depende da logística do Ministério da Saúde, e ouvir boas histórias.

Uma delas me foi contada por um filho de enfermeiro já aposentado, que vacinava público numeroso há algumas décadas, quando não existiam seringas ou agulhas descartáveis. O profissional, antes de iniciar o expediente, dedicava-se a fazer nova ponta na extremidade da agulha, que após um dia inteiro de uso ficava rombuda. Parece lenda, não?

Outro relato chegou por um amigo que vive em Portugal e fora convocado pelo Exército para a guerra pela independência das colonias africanas. Era rapaz e, junto com a tropa recém-chegada, foi levado para receber algum medicamento preventivo. Segundo ele, os recrutas se puseram em fila para atendimento por três enfermeiros. Como numa linha de montagem, o primeiro higienizava o braço de cada um. O segundo espetava a agulha no local limpo. E o terceiro acoplava à agulha a seringa com o líquido. Fiquei imaginando aquela agulha enfiada nos braços à espera de complemento. Que agonia!

Sou antiga, e cheguei a conhecer as injeções não descartáveis. Vinham numas caixinhas de metal que, na infância, pareciam atraentes porque prateadas e brilhantes. Algumas ampolas eram bonitas, com um vidro opaco semelhante aos jateados de agora. Mas as agulhas eram sempre temerárias, compridas, grossas, e ainda precisávamos assistir ao ritual de espirrar parte do líquido para o ar, a fim de mantê-la desentupida, o que parecia prolongar por uma eternidade a expectativa.

Agora se aproxima a data da segunda dose contra a Covid-19 e, por via das dúvidas, pretendo recebê-la num posto diferente. No primeiro, fiquei preocupada com a integridade das vacinas, porque era um ginásio de esportes amplo e sem ar condicionado, onde fazia muito calor. Já não estarei tão ansiosa como antes, a enfermeira será outra e quem sabe, desta vez, saia apenas com um furinho quase invisível em vez de mancha e, com certeza, levarei para casa imensa esperança de um tempo melhor, a partir do 16º dia.

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