Um tigre em Lisboa
Logo à porta de entrada, há uns caixotes de fruta acolhendo livros usados a preços irrisórios. Não sendo um alfarrabista – como Fernando Ramalho, um dos fundadores, faz questão de realçar – a livraria Tigre de Papel prima pela intenção “de que os livros não se percam, queremos dar-lhes uma nova vida”.
Estamos na Rua de Arroios, no coração do bairro homónimo, um dos mais cosmopolitas da Europa. Em 2016, um artigo do Expresso identificava, na freguesia, pessoas de 79 nacionalidades. Em Junho desse mesmo ano, nascia este espaço dedicado aos livros, que rapidamente entrou nas rotinas da vizinhança. E não só.
“Já tinha uma ligação aos livros, trabalhando em editoras, como a Campo da Comunicação, ou ligado à Outro Modo, responsável pela publicação da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. Eu e o Bernardino Aranda estávamos ligados a uma associação, a Unipop, onde criámos seminários, espaços de debate e uma revista, a Imprópria. Foi dessa vontade de trabalhar com livros e programação que nasceu esta casa”, explica.
A zona junto à montra é, quinzenalmente, dedicada a um tema. Neste momento, o 25 de Abril serve de mote à escolha dos destaques. Aliás, em toda a loja, a escolha dos títulos não esconde uma costela ideológica, acentuada com a criação de uma chancela editorial, onde títulos como O Governo das Desigualdades ou Os Bancos: Antes da Nacionalização convivem com obras de Sallete Tavares ou as novelas gráficas de Júlio Barata.
Aqui, não se faz distinção entre livros novos e usados, partilhando ambos as respetivas secções. Ficção, Ciências Sociais e Humanas, Artes, Poesia, Infantil, Juvenil, são algumas das divisões que as estantes acolhem. E uma boa aposta no livro escolar. “O Bernardino já tinha uma livraria de família e tem muita experiência nesse sector, desde o início que entendemos dedicar-lhe muita atenção, até porque, é uma grande ajuda na sustentabilidade da livraria”, diz Fernando.Fernando Ramalho na livraria Tigre de Papel, a recitar um parágrafo do livro Casas Pardas, de Maria Velho da Costa.
Inicialmente, havia o Autor do Mês, em torno do qual eram organizadas as atividades, conforme testemunham os cartazes criados pelo argentino Alejandro Levacov, igualmente responsável pelo logótipo da loja, artista que morava na zona. “O primeiro grande evento foi sobre o José Saramago, tivemos aqui a Pilar Del Rio, a casa estava cheia até à porta”, recorda. E foi essa programação regular que fez destacar o local. Com frequência, autores que eram quase vizinhos marcaram presença, como Dulce Maria Cardoso, Manuel da Silva Ramos, Rui Tavares, Ricardo Pais Mamede ou José Tolentino Mendonça. “A dada altura, começámos a gravar as sessões em áudio e os podcasts estão disponíveis no site”.
Resta interpretar o nome da livraria, que surgia numa lista de hipóteses iniciais postas à discussão entre amigos. Quando se deram conta dos ecos de uma frase de Mao Tse Tung (“o Capitalismo é um tigre de papel”), tiveram a certeza de que estava encontrado o nome.
Nobreza de livreiros
A rua é pacata, apesar desta zona da cidade fervilhar, uma travessa inclinada que faz a ligação entre a Avenida Pedro Álvares Cabral e a extensa Rua de São Bento, batizada com o nome de uma jovem do séc. II, assassinada por recusar casamento, Santa Quitéria. Entra-se. As estantes altas a todo o comprimento, os sacos com livros espalhadas pelos cantos, as pilhas de volumes que exibem o colorido de algumas capas, são reflexo do dinamismo que transparece.O pátio ao fundo, a céu aberto, será mais propício para momentos de leitura relaxante, dois dedos de conversa entre clientes habituais. Apesar da designação, a Livraria Snob prima pela descontração. Mas, quanto ao nome da casa, já lá iremos.
«Formei-me em Literatura, sabia que queria trabalhar com livros, mas não sabia bem de que forma. Ainda pensei em ser professora, mas percebi que não era isso o que queria. Saí da Faculdade em 2004, um ano depois, fiz uns audiolivros no Ministério da Cultura e, ainda em 2005, comecei a trabalhar na livraria da Fnac. Foi aí que percebi o que queria fazer», resume Rosa Azevedo, 38 anos.
A livraria nasceu em Agosto de 2014, ainda em Guimarães, fundada por Duarte Pereira. Um mês depois, Rosa e Duarte conheceram-se, foram mantendo o contacto e, quando a livraria arriscou vir para Lisboa, era 2016, não havia volta a dar, eram a dupla certa para levar a aventura adiante. Instalaram-se na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul (primeiro, na histórica sede, ao fundo da Av. D. Carlos I, depois, em São Bento). Até que tentaram a autonomia e montaram casa própria.
“A nossa maior aposta é na edição independente, se não fossem as pequenas editoras, quase não tínhamos os novos autores portugueses de poesia. E temos muitas edições de autor. O que marca a diferença numa livraria, é a surpresa, se não te surpreendes, não vais voltar. E fizemos muitas feiras, um pouco por todo país, as feiras têm a vantagem de decorrer em sítios que não são livrarias e, portanto, captarem outro tipo de público”, conta Rosa.
Integram a RELI – Rede de Livrarias Independentes, mas a defesa do pequeno negócio, é de há muito. De 2009 a 2014, Rosa integrou o Movimento Livreiro, participou nos Encontros Livreiros, em Setúbal, dinamizados em torno da Livraria Culsete, até morte do seu fundador, Manuel Medeiros. Desde 2007, cria cursos temáticos, sobre Literatura Portuguesa do séc. XX, ou do séc XXI, o Surrealismo ou aquele a que chamou As Mulheres Raras, em torno de escritoras esquecidas do séc XX, formações que têm passado por livrarias ou Câmaras Municipais.Rosa Azevedo na livraria Snob, a recitar O Poeta em Lisboa, um poema de António José Forte.
Mas, tínhamos prometido: e o nome da loja? Rosa sorri durante toda a resposta: “É uma brincadeira com a origem da palavra, ‘sine nobilitate”, ou seja, sem nobreza, significava exatamente o oposto do que passou a representar. Inicialmente, era uma provocação. Por nós, interpretem como quiserem”.
A tradição livreira da resistência
Ela lembra-se bem. “Comecei no dia 22 de Outubro de 1986, fui contratada para abrir o piso de cima da livraria”, recorda com pormenor, tal como recorda as visitas regulares do vizinho da loja, David Mourão-Ferreira, “muito delicado, um cavalheiro”, o então Presidente da República Mário Soares, “que fugia dos guarda-costas, para se perder pelas estantes” ou do escritor e professor universitário Rui Zink, “quando era ainda um estudante”.
Ficou até 2002, assistindo à falência da casa. “Isto dos livros é um vício, começa-se e nunca mais se para. Já são quase 35 anos desta vida.” No mesmo espaço, a Coimbra Editora – outra falência a que assistiria, anos mais tarde – lançou a sua nova loja Jurídica, e finalmente a Leya ficou com a loja, que integra hoje, sob a designação Leya na Buchholz.
“É um local muito especial”, comenta, enquanto sobe e desce o olhar pelos três pisos, pela escada de caracol, pelo elevador junto à porta que transporta os livros à cave, que acolhe agora uma Loja do Professor. A mesma cave onde, até 1974 funcionou uma galeria, acolhendo artistas como José Escada, Noronha da Costa, Eduardo Nery ou Malangatana. “As colunas, os banquinhos, tudo isto foi idealizado pelo fundador e uma boa parte veio da loja antiga”, conta Cristina Marques.
A loja data de 1943, quando Karl Buchholz abriu, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, uma livraria com o seu nome, depois da que tinha na Alemanha ter sido bombardeada levando-o a procurar paragens mais pacíficas. Em 1965 passou de armas a bagagens para a Rua Duque de Palmela e consolidou-se como um centro da intelectualidade e da nata política portuguesa, com Francisco Sá Carneiro, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes ou Vasco Graça Moura entre a clientela fiel. A oferta abundante de livros importados, a galeria de Arte e a secção de Música Clássica eram motivos fundamentais para cativar os clientes mais exigentes. Cristina Marques na livraria Buchholz, a recitar O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro.
Cristina não tem memórias tão longínquas, mas tem outras, igualmente importantes. Como aquele dia, inícios deste século, em que estava com uma banca na Faculdade de Direito. “Na secção de livros estrangeiros, um aluno perguntou por uma obra de Direito Administrativo, em Francês, uma coisa cara. Mostrou muito interesse, mas logo teve de confessar que era um livro demasiado pesado… para o seu bolso. O professor que estava ao lado, a folhear, percebeu o embaraço, perguntou-lhe que dinheiro tinha, pagou o restante na caixa e o rapaz saiu dali delirante de alegria”. O professor era um cliente já conhecido, leitor compulsivo e bibliófilo com pergaminhos, que dá pelo nome de Marcelo Rebelo de Sousa.
A poesia nunca estará completa
Changuito nasceu em Lisboa, em 1973, chamaram-lhe então Mário Guerra. Hoje, é pela alcunha familiar universalmente disseminada que todos o conhecem e tratam. A Poesia Incompleta, no Bairro da Lapa, é a forma que encontrou para se relacionar com o mundo.
“Geri um bar durante 12 anos, depois fiz outro bar, já com livros (em 2006) chamado A Mariquinhas, no Largo de Santo Antoninho, no fim do Elevador da Bica e, em 2008, abri a Poesia Incompleta, perto do Príncipe Real. Depois, fui para o Brasil. Apaixonei-me. No Brasil correu muito mal. A livraria! A paixão não, correu bem…”, esclarece.
Depois da entrada, discreta, percorrendo as estantes laterais, a oferta é clara. “Uma livraria de poesia, toda a poesia, interessa-me a poesia que saiu ontem e a que saiu há 150 anos. De poesia, dizia, e de correlatos, ou seja, biografias de poetas, ensaios sobre poetas, ou correntes estéticas, prosas de poetas… aquilo que há em volta da poesia. Quase todos novos, cada vez tenho menos coisas usadas”, vai descrevendo, salientando a como a poesia é a Rosa do Mundo (para citar a magistral antologia internacional organizada por Hermínio Monteiro). “Agora devo ter à volta de vinte e tal idiomas, quando fechei a loja do Príncipe Real tinha 59”.
Com exceção das antologias e de algumas propostas em áudio, as prateleiras são preenchidas por ordem exclusivamente alfabética, “o Ernesto Sampaio ao lado do Ezra Pound. E eles entendem-se”, graceja Changuito, acabando por defender a capacidade que a poesia terá de ultrapassar as ideologias, ao evocar “aquele vídeo do Pasolini, a ler as traduções ao Ezra Pound, já muito velhote… um tipo que foi acusado de ser tudo, anti-semita, branco, de um país dominante, a escutar, com a máxima atenção, as traduções de um homossexual, de um país pobre, de uma região pobre desse país, comunista… tu percebes que há uma espécie de entendimento pela beleza”, afiança.
Programação, houve e voltará a haver, como “leituras de poesia, que eu e alguns convidados fazemos, lançamentos de livros, conversas com editoras, e umas entrevistas que eu vou fazendo com gente de que gosto, que se chamam Tédio Talks. Conversas a partir do ócio, e não do lazer”, alerta, minucioso.
O nome da casa tem uma dupla motivação. Primeiro, é “uma homenagem ao Mário Dionísio, cujo volume de poesia reunida se chamava assim. Depois, mesmo que tivesse a Songanol a patrocinar-me, eu nunca conseguiria completar a poesia”, ironiza.
Esta vida excede a dimensão profissional, como facilmente se apercebe quem desfrute de dois dedos de conversa com o livreiro. “Abri porque não havia, mesmo em outros países, há muito poucas. Não é um movimento empresarial, é uma necessidade de um leitor. Nós podemos reler o Moby Dick, o Crime e Castigo, o Dom Quixote… um poema, um grande poema, quando te toca, uma leitura ressoa muito tempo, mas tu voltas, e voltas, e voltas… e um grande soneto lê-se em um minuto, não há capítulos de grandes livros que se leiam em um minuto”, comenta.João Morales a recitar Em Lisboa com Cesário Verde, um poema de Eugénio de Andrade.
A conversa deriva para a rapidez com que as livrarias, ditas mainstream, reduzem os livros a relâmpagos nos expositores, a mesma velocidade que nos dita os dias, a utilização das tecnologias em massa, um ritmo cego, desenfreado e decepcionante. Changuito acaba por deixar escapar: “Ler poesia é uma grande maneira de mandar este ritmo à merda”.
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