sexta-feira, abril 9

García Lorca

Talvez poucos poetas tenham tido uma consagração póstuma tão decisiva na afirmação de seu valor literário e humano quanto a de Federico García Lorca. E que se combinou o poeta e o símbolo, uma grande poesia e a revolta contra um mundo que mata os seus artistas. Somos os espectadores e possíveis cúmplices de uma época em que a ordem política se levanta a desordem lírica e humana dos homens livres. Nisto reside o fundo emocional que nos leva a amar García Lorca. Além disso, a vida de García Lorca se traduz como um símbolo também da verdadeira Espanha, dessa Espanha sempre "disposta ao risco de resgatar a alma ou de derramar seu sangue". Mais que Rupert Brooke ou Péguy, porque a injustiça de sua morte digamos, foi mais pura, Lorca ficará como o sinal de tempo em que os poetas podem ser assassinados na rua em nome de um mito ou de uma política caudilhesca.

Lluis Bagaría i Bou, cartunista e autor da última entrevista do poeta amigo

Foi o poeta das coisas, foi, antes de tudo, um sensualista, professor dos cinco sentidos corporais, como ele próprio desejava que os poetas fossem. O edifício de sua construção poética é simplificado, mas esconde um mundo de minúcias técnicas, delicadezas pacientemente sutis, surpresas prodigiosas. Seu poder verbal chegou ao requinte da aparente pobreza. Com esta poesia, estamos nos antípodas da retórica, melhor inverte-se um conceito, porque o fausto se revela na poesia de García Lorca por uma opção pelas coisas pobres, pelas coisas que o desgaste cotidiano paralisou e emudeceu. É, enfim, uma poesia popular pelo espírito e aristocrática pelo manejo de uma técnica habilmente estruturada. Ele se convencera de que são os elementos arquitetônicos da poesia ― as palavras, as imagens e metáforas ― que asseguram ao poema os seus direitos de eternidade.

Em toda grande poesia, haveremos de notar sempre um conjunto de caracteres constantes que fornecem a linha concepcional do poeta, a linha que lhe empresta uma fisionomia dentro da diversidade. Em García Lorca, o amor, a terra, a morte e o povo são estas constantes principais. A viagem a Nova York forneceu-lhe o grande acidente, ou seja, um complexo de situações que o transtornaram, que se opuseram às suas convicções estéticas e as venceram. Poeta intimista diletante de nuança, consciente de sua solidão e da sua terra, Lorca se viu de súbito desenraizado de seu mundo, perdido num cenário diverso das paisagens granadinas. Troca então o subjetivismo por um sentimento coletivo desesperado, substitui a nuança pela metáfora, largo e contundente abandona o exercício de uma forma delicada e minuciosa pela espontaneidade de uma forma agressiva e desconcertante. Quando ele voltou dos Estados Unidos ao confessar que via a poesia de um modo diferente concluiu que o fato de ser ele granadino o levava a compreender os perseguidos, o negro, o judeu, o cigano. Esta solidariedade aliás, já estava no Romancero Gitano, canto de amor que se irmanaria aos vagabundos perseguidos pelos tenentes coronéis da guarda-civil.

E não apenas por isso que admiramos Lorca. Todos que amam a forma literária hão de ler comovidos poemas como Oda al Santíssimo Sacramento del altar ou Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, onde as palavras estão fixadas em uma ordem estranhamente perfeita.

Paulo Mendes Campos, Diário Carioca 6/10/1946

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