quarta-feira, abril 14

O medo dos clássicos

Nunca li Os Três Reinos. É uma confissão que faço com vergonha, mesmo sabendo que nunca temos tempo para ler tudo o que algum dia se publicou. Deste lado do mundo, a crítica literária vai-se fazendo com o cânone às costas, mas é um cânone onde não há grande espaço para literaturas de outras latitudes que não as ocidentais. Um Homero, um Shakespeare, um Cervantes, tudo leituras sem as quais ninguém deveria escrever sobre livros com a consciência tranquila, mas onde andam os grandes clássicos chineses, indianos, japoneses? Um Lao Tze ou um Sun Tzu para contar a história e brilhar em inquéritos de Verão não chegam, claramente. Foi com esta severidade para comigo mesma que andei pelas livrarias de Macau – que são poucas e não tão bem fornecidas como se esperaria, mas isso dará outra crónica – demandado uma edição de Os Três Reinos, atribuído a Luo Guanzhong, em inglês, naturalmente.


Com a demanda fracassada como um Quixote sem moinhos, tentei a sorte em Hong Kong, numa livraria de centro comercial. Nas estantes, nada de Os Três Reinos, pelo menos em versão integral. Havia o segundo volume de uma edição de dois tomos e isso, claro está, foi liminarmente recusado. Depois do fogo, como bem disse Umberto Eco, dos bichos do papel e dos senhorios que não consertam infiltrações, as obras truncadas são um dos maiores pesadelos de qualquer bibliófilo.

Uma última tentativa desta longa demanda aconteceu no aeroporto, poucas horas antes do voo de regresso a Portugal. Com uns dólares que ainda restavam no bolso e aquele dinheiro que nos dão à saída do ferry e que nunca percebi bem de onde vem, procurei a Page One que vinha indicada na planta do edifício e lá estava ele. Na verdade, eram eles: quatro volumes dentro de uma caixa devidamente selada com plástico, numa edição que não dava para ver se era boa ou má, mas que naquele momento resolveu o assunto. Com o tijolo nas mãos era preciso resolver a logística do voo. Ia ficar num lugar à janela, sem hipótese de me levantar muitas vezes, por isso não era dos quatro volumes de um clássico chinês que eu precisava no colo, e sim de umas pastilhas elásticas, uns comprimidos para me esquecer do facto de estar dentro de um avião e mais uma ou outra coisa essencial. Troca cirúrgica: a caixa com os livros migrou para a mochila de cabine e os bens essenciais para o voo passaram para o saquinho da Page One, de modo a não ficarem barricados na bagageira.

Em Frankfurt, numa escala que aconteceu pelas seis da manhã, sou travada no percurso entre portas de segurança e túneis de aeroporto por um alemão que concentrava e si todos os maus clichés que a maldade e o preconceito atribuem aos alemães: era grande como um saxão e bruto como uma chanceler. A minha mochila de cabine estava à sua frente e quando o homem disse qualquer coisa que o meu sono e a minha vontade de chegar a casa identificaram como “take your bag, please”, como quem diz “despacha-te a tirar isto daqui que há mais gente na fila”, não percebi que o que o homem estava realmente a dizer era um sonoro “open your bag”, com um “please” tão forçado que veio acompanhado de uma mão espalmada sobre a mala que eu tentava retirar da bandeja. Pedi desculpa pela incompreensão, porque num sítio destes só se pede o livro de reclamações se houver uma grande injustiça a acontecer-nos diante dos olhos – ou muitas horas de escala e pouco amor ao passaporte -, e abri a mala. O meu cérebro começou imediatamente a tentar descobrir o que poderia ter motivado a suspeita no raio X e pensei que teria sido o pequeno boião de pomada do tigre que transportava comigo, numa tentativa vã de aliviar as dores no pescoço. Nada disso. Assim que a mala se abriu, o enorme saxão apontou para a caixa com os quatro volumes, capa mole, embalagem selada e carregou a fisionomia com suspeição. De luvas postas, vi-o agarrar a medo nos livros e olhar para a capa como quem mira cinco quilos de cocaína, ou duas metralhadoras de fabrico caseiro, ou uma iguana absolutamente à beira da extinção embrulhada em pele de panda bebé. “The Three Kingdoms”, sussurra o homem com ar de quem me apanhou, sibilando o “th”. Depois de olhar para todas as faces da embalagem, chamou um colega e disse-me que eu devia acompanhá-lo, enquanto lhe passava para as mãos os singelos livrinhos, sempre mantendo uma distância de segurança entre o perigoso objecto e o seu corpo. Lá acompanhei o novo carrasco de material impresso, que me pareceu um bocadinho menos saxão e chanceleriano do que o primeiro.



Entrámos numa sala e pensei que estava quase a chegar o momento de dizer que não havia direito de incomodarem uma cidadã por causa de um livro. Em vez disso, perguntei ao meu novo custodiante se havia algum problema com aquele livro, obtendo como resposta um sorriso amarelo e um seco “vamos ver”. Os livrinhos foram entregues a um terceiro homem, provavelmente o rei da salinha misteriosa, que os colocou em cima de uma mesa e se pôs a olhar para eles. Eu não percebia o que se passava, mas ainda percebia menos por que não abriam o raio da embalagem de plástico se estavam tão desconfiados do que podia haver dentro dos livros. Não abriram.

O terceiro homem agarrou num paninho, borrifou-o com um líquido, passou-o pela caixa plastificada e ficou a olhar para o seu serviço como quem admira um quadro. Passados pouco segundos, a caixa foi-me devolvida e o segundo carrasco disse-me que estava tudo bem e que podia ir. Perguntei o que poderia estar mal, mas ele repetiu a resposta e eu percebi que o que queria dizer era “é melhor ires andando se não quiseres passar as próximas 24 horas a descobrir o maravilhoso das pequenas autoridades sem limites enquanto vês passar os aviões”. É também isto que se aprende nos livros, a perceber segundos e terceiros sentidos nas frases que aparentam apenas uma direcção.

Ainda não iniciei a leitura de Os Três Reinos. Estou à espera de coragem para abrir o celofane.
Sara Figueiredo Costa

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