Como vou dizer esse sentimento? Tem uma pitada de nostalgia, outra pitada de esplendor evidente, também um punhado de amor muito humano, outro punhado de pimenta, tudo redemoinhando num caldo de memória enfeitiçada por certos nomes, certas sagas, certos sonhos que sonhamos em conjunto como fôssemos seus afluentes. Dito assim, com emoção, como quem acaricia uma gigante criatura fabulosa que ainda lhe é familiar, apesar de suas infinitas metamorfoses: América Latina.
Sete anos sem Gabriel García Márquez, hoje, exatamente hoje, parecendo um tanto mais, por ter ido embora o escritor, fechando seus livros, tempos antes de partir. Eu tinha dezessete anos quando levei da biblioteca de minha mãe para o meu quarto “Doze contos peregrinos”. Não foi o livro todo, foram os três contos finais que me ganharam com três imagens inesquecíveis. Voltei à estante da mãe cheia de Gabos e de lá tirei “Do amor e outros demônios”, primeiro romance dele que li, cujo prólogo ainda hoje se desdobra na minha cabeça, assombroso e vivo como aquela interminável cabeleira acobreada brotando da lápide ao primeiro golpe da picareta.
De volta à estante cativa, mais um Gabo: “O amor nos tempos do cólera”. Era uma edição já bem manuseada, começando a amarelar nas bordas, que emanava um cheiro humano misturado ao tempo que, numa fabulação afinada à do livro, se convertia num cheiro de amêndoas pouco a pouco se mudando num perfume noturno de gardênias. E lá estava eu, fresca de vida, coração jovem também, puro de grandes decepções e expectativas, passando as férias enfiada na história desse amor temporão, navegando em águas lentas, até encalhar num calor cheio de mosquitos com dois velhos meio embriagados de anis se amando no camarote do comandante.
Só então cheguei ao Gabo mais famoso, deus de Macondo, tinha dezoito ou dezenove anos, e mais umas tantas décadas nas minhas horas com os Buendía. Assim se passaram outras férias, e eu ainda nem havia chegado ao Gabo jornalista ou aos livros que o próprio considerava os seus melhores. Só depois de mais de uma década chegaria a “O outono do patriarca” e “Ninguém escreve ao Coronel”.
Mas minha intenção não é arrolar aqui minha estante de Gabos, senão sentir o cheiro dessa data. Sete anos sem ele. O que me traz de volta aos seus livros são as saudades desse primeiro enfeitiçamento, também certa emoção de imaginar que uma garota, um garoto, alguém hoje recém-chegado, ainda sem intimidade com esse tal Gabo, de repente se alugue para sonhar e também se sinta enfeitiçado com o perfume de umas gardênias murchas. Esse sentimento, esse caldo quente de memória que então continua a borbulhar, atando um sonho a outro, acordando aquela criatura comovente, que até parecia já esquecida, mas não: ali está ela, fabulosa, gigantesca, generosa, nos correspondendo, se procurada, redescoberta, desejada.
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