domingo, junho 13

'Aquilo que a tecnologia nos oferece logo se torna aquilo de que precisamos desesperadamente'

O telefone toca ao meio-dia em ponto. Do outro lado da linha, uma voz grave anuncia: “Alô, Brasil! Aqui quem fala é a América!”. É Don DeLillo, autor de romances filosóficos e hipertecnológicos que se firmou como um dos mais originais prosadores americanos do último meio século, falando de Nova York.

— Por favor, me chame de Don — diz o escritor de 84 anos, pedindo desculpa e avisando que a entrevista será curta, pois sua voz começa a falhar se a conversa se estende. — Como estão as coisas por aí?

Don é atencioso, mas a pergunta tem um quê de retórica. Antes da entrevista, sua agente havia avisado: as perguntas devem ser sobre “O silêncio”, o romance mais recente do autor, recém-publicado no Brasil, e não sobre a vida pessoal dele ou suas opiniões políticas.

À primeira vista, soa contraditório que alguém que passou a vida a escrever romances sobre temas como terrorismo (“Jogadores”, 1977), catástrofes ambientais (“Ruído branco”, 1985) e colapso financeiro global (“Cosmópolis”, 2003) prefira não falar sobre política.

— Claro que tenho convicções políticas, mas converso sobre elas com minha mulher, a família, os amigos. Não gosto de emitir opiniões políticas em público — explica. — A política aparece nos meus livros em sentido mais amplo. Jamais escreveria ficção sobre o governo Trump, por exemplo.

Em “O silêncio”, Don volta a um de seus temas recorrentes: como a tecnologia resulta em desumanização. “O mundo é tudo, o indivíduo, nada”, afirma um dos personagens. No romance anterior, “Zero K”, lançado no Brasil em 2016, ele refletia sobre tecnologia, imortalidade e criogenia — a preservação de cadáveres congelados para ressuscitá-los no futuro. Em “O silêncio”, investiga o que acontece com as relações humanas quando todas as tecnologias param de funcionar. Será que ainda somos capazes de nos comunicar sem a mediação de telas?

A trama do livro se passa em fevereiro de 2022, quando “ainda está fresco na memória de todo mundo, o vírus, a peste, a Covid-19, as pessoas caminhando pelos terminais dos aeroportos, as máscaras, as ruas das cidades esvaziadas”. Num domingo de Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, de repente, todas as telas se apagam, a internet e as linhas telefônicas param de funcionar e a eletricidade falha. Ninguém sabe se a culpa é de chineses, russos ou extraterrestres. O apagão deixa cinco pessoas presas num apartamento: um casal recém-chegado de uma viagem à Europa, um rapaz caladão e aficionado por Albert Einstein, uma professora de física aposentada e o marido dela, que, quando a TV desliga, continua com os olhos fixos na tela, começa a narrar o jogo interrompido e até os comerciais. Incapazes de conversar, eles lamentam não ser ouvidos e se entregam a monólogos esquisitíssimos (incluindo até citações em alemão e definições enciclopédicas do sistema capitalista) que alguns críticos compararam ao teatro do absurdo de Eugène Ionesco e Samuel Beckett.

—  Aquilo que a tecnologia nos oferece logo se torna aquilo de que precisamos desesperadamente — afirma o escritor. — Já passamos por apagões em Nova York. No primeiro, as pessoas simplesmente saíram às ruas, conversaram umas com as outras, contaram piadas, riram. Nos seguintes, começaram a ficar cada vez mais perturbadas. Houve lojas saqueadas e prédios invadidos.

Don prefere tecnologias analógicas, ainda que elas também falhem. E conta que precisa levar sua máquina de escrever Olympia, comprada de segunda mão, ao conserto.

— Gosto dessa máquina porque a fonte dela é bem grande e permite ver claramente as letras e as palavras na página — conta o escritor, que não tem smartphone e recorre à mulher quando precisa interagir com a tecnologia. — Desde os “Os nomes” (1982), datilografo sempre um parágrafo por página para descobrir como cada letra se conecta visualmente com cada palavra e cada palavra com a página. Para escrever, tenho que engajar não só minha mente, mas também meus olhos.

Embora tenha um título que remeta ao som (ou melhor, à falta de som), “O silêncio” começou como uma imagem, como todos os livros de Don. Ele primeiro imaginou um homem que olhava fixamente para uma tela apagada. Depois, viu ruas vazias e pessoas incapazes de se comunicar, até chegar ao apartamento onde se desenrola a trama. Em “O silêncio”, há outras imagens que flertam com a poesia, como a de uma mulher que se exercita despreocupada nas ruas nova-iorquinas enquanto o restante da população se desespera com o apocalipse tecnológico. Don sente saudade de passear pelos museus à procura de pinturas abstratas.

— Um de meus prazeres era ir a museus em Nova York
 e ficar parado olhando quadros de Pollock e Rothko, identificando padrões e sem precisar pensar em palavras. Como estou velho e cada vez mais lento, vou menos a museus. Antes da pandemia, fui a uma galeria, um único cômodo onde estavam expostas duas ou três telas. Minha mulher e eu passamos horas lá. Não havia mais ninguém.

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