segunda-feira, junho 7

A vida era uma oração

Fui à biblioteca. Passei os olhos pelas revistas, pelas fotografias que traziam lá dentro. Um dia aproximei-me das estantes e tirei um livro. Era o "Winesburg, Ohio". Sentei-me numa mesa de mogno comprida e comecei a ler. De repente, o meu mundo ficou virado do avesso. O céu desabou. O livro prendeu-me. Fui surpreendido pelas lágrimas. O coração batia acelerado. Li até me arderem os olhos. Levei o livro para casa. Li outro do Anderson. Eu lia e lia e sentia-me desolado e sozinho e apaixonado por um livro, vários livros, até que a coisa surgiu naturalmente, e sentei-me com um lápis e um bloco grosso, e tentei escrever, até que senti que não poderia continuar porque as palavras não apareciam tal como apareciam no Anderson, surgiam apenas como gotas de sangue vindas do meu coração.(...)

De vez em quando eu caminhava até ao fim do molhe, até ao cais dos ferries, de onde os barcos zarpavam para atravessar o canal até San Pedro. A viagem de ida e volta custava vinte e cinco cêntimos. Sentia-me um milionário sempre que espetava a minha moeda de vinte e cinco cêntimos e partia para San Pedro. Alugava uma bicicleta e passeava pelas colinas de Palos Verdes. Passava pela biblioteca pública e carregava-me de livros. De regresso à minha barraca, acendia o lume na salamandra e sentava-me ao calor a ler Dostoiévski e Flaubert e Dickens e todos os famosos. Nada me faltava. A minha vida era uma oração, uma ação de graças. A minha solidão era um enriquecimento.

(…)O meu primeiro embate com a fama pouco teve de memorável. Eu era ajudante de empregado de mesa na Marx’s Deli. Corria o ano de 1934. O local ficava no cruzamento entre a Third Street, em Los Angeles. Eu tinha vinte e um anos, vivia num mundo delimitado a ocidente por Bunker Hill, a oriente pela Los Angeles Street, a sul pela Pershing Square e a norte pelo Centro Cívico. Era um empregado incomparável, com vigor e estilo para a profissão, que, embora extremamente mal pago (um dólar por dia mais refeições), atraía uma considerável dose de atenção quando rodopiava de mesa em mesa, equilibrando numa mão uma travessa e arrancando sorrisos aos fregueses. Tinha algo mais para oferecer aos meus clientes habituais além da perícia de empregado, uma vez que também era escritor. Tal fenómeno tornou-se conhecido certo dia, depois de uma fotógrafa bêbeda do Los Angeles Times, que se sentara ao balcão, me ter tirado diversas fotografias a servir um cliente enquanto me fitava com olhos de admiração. No dia seguinte saiu no Times uma reportagem
de fundo associada à fotografia.
John Fante, "Sonhos de Bunker Hill'

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