Raimundo Nogueira foi a criatura mais cheia de vida entre todas que conheci. Faço a afirmativa depois do demorado exame de consciência. Meus amigos e meus conhecidos podem sentir vibrações intensas de alegria; mas meus amigos e meus conhecidos (disto eu entendo o necessário) estão corroídos pela morte. O mundo todo está corroído pela morte. Por isso, quando as pessoas morrem, nós dizemos com uma sinceridade alarmante: quem morre descansa... A morte repousa na morte, e a vida se esquece.
Você que me lê também teria gostado dele. Foi por um desencontro eventual que você não se tornou amigo ou amiga de Raimundo José Nogueira. Ele teria trazido para o dia a dia de sua intimidade, não um júbilo esfuziante, mas um vasto sorriso espontâneo, sem motivo determinado, um sorriso sem qualquer explicação irrefutável, um sorriso que significava, creio eu, isto: acabaram de inaugurar o mundo, o sol faz luz, o mar é enorme e cheio de peixes, há montanhas, rios, lagos, há árvores, todas elas iguais e todas elas diferentes, há cores e sons, há bichos de todas as formas, às vezes chove, às vezes o ar fica azul, à noite aparecem estrelas e lua, de madrugada costuma soprar um vento frio, os pássaros cantam, os homens falam, e há machos e fêmeas e eles se amam...
Raimundo Nogueira teria trazido para a sua vida a alegria do que existe, a alegria dos sentidos, da inteligência, da memória, dos feitos do homem, dos frutos da terra, a alegria que se pode tocar. E numa bela manhã, se você merecesse, se você aprendesse a ver simplesmente as coisas, ele, metido numa japona azul-marinho e de botões dourados, o sorriso mais vasto ainda, traria à sua casa um resumo de todas as dádivas terrenas - um peixe, que se come de certo modo.
Que animais lhe sabem de preferência, eu lhe perguntei uma vez, de repente, brincando; e ele respondeu, sem pestanejar: os que nadam. Que me diz a respeito de pato? Ele: O pato na cozinha paraense é uma dádiva de Deus. Gosta de arenque? Ele: Não morro de amores. Há muito tempo que não come arenque? Ele: Comi agora mesmo. Já pintou algum animal comestível? Ele: Pintei siris durante anos. Arroz? Ele: Das coisas mais gostosas que conheço. Quibe? Ele: Trabalho em toda a linha árabe. Doce de coco? Ele: Os melhores são quero-mais e mãe-benta. Ainda come rapadura? Ele: Sou fiel à infância. A respeito de massas? Ele: Italiano sabe o que faz. Comida chinesa? Ele: Com 5 mil anos de experiência, é o fino. Leite? Ele: Passei anos tomando leite sem reclamar.
A espontaneidade era a sua força. Gostava de comer, mas só os muito distraídos não veriam que seu apetite era amor, e todos os objetos cabiam em seu amor.
Raimundo aprendia a sorrir para o que existe a cada momento. Adorava samba, passava horas ouvindo Bach, Vivaldi, um espanhol qualquer meio esquecido, mal conseguia falar quando se lembrava das músicas de Villa-Lobos.
Sua adesão natural ao momento, tocante, era, afinal, o que faltava a todos nós, que o admirávamos. Se lhe colocavam nos braços um violão, abria-se num sorriso, e tocava. Se lhe pediam para cantar, abria-se no mesmo sorriso, ainda mais satisfeito, e cantava. Tem dança, dançava. Tem luar, ficava olhando o luar. Não tem nada... Quando não tinha mais nada, ele cruzava as pernas, assobiava uma ária e dizia: acho que vou andando...
Quando lançaram o primeiro satélite artificial, chegou lã em casa, não mais sorrindo, mas se rindo de entusiasmo pelos homens e me disse: Que sorte a minha ter vivido para ver isto. Quando a Petrobras descobria um poço de petróleo, quando acabara de ler um poema de Drummond ou de Fernando Pessoa, quando um jogador fazia um gol bonito, quando uma colônia da África se tornava independente, ele sempre telefonava e me fazia compartilhar, não da sua esperança, da plena alegria daquele instante.
Uma vez, atravessávamos de lancha o Recôncavo Baiano, e um saveiro cruzou por nós, bem distante. Raimundo fez um gesto com o braço e os da outra embarcação responderam. Sorrindo, virou-se depois para mim e falou: Uma das coisas que acho mais lindas no mundo é gente dizendo adeus.
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