sábado, junho 19

Natureza viva

É preciso acender a natureza com amor. Ressaltar, por exemplo, o urubu como vassoura pública do mundo. Ver essa ave negra pousada na estaca como simples grandeza de pobre, as asas abertas como guarda-chuva no tempo, anteparo ao sol a pino. Nave pelo céu de trevalume, olho voraz no azul.


Do boi, faz-se necessário registrar a sina ruminante, sentir com dor esse mugido ausente ecoando no verde. A síntese imutável de pasta em conserva de lata, o verde que se foi. Respirando o ar do campo com a flor, culpado, mas sem pecado, morre sem rancor.

O gato é puro ócio, tomando banho de sol no pátio, sonso do bigode ao rabo. Quando alguém nele tropeça, logo solta um miado linguarudo, pela extensão do pelo fica todo arrepiado. Lá se foi macio, fingindo cansaço, na sua armadilha o pássaro no abafo.

Minha Vó Ana disse-me certa vez que de tanto namorar a lua o jabuti ficou de olhar apagado. Nas geológicas passadas anda a dizer a qualquer um que quem tem pressa na estrada tropeça. Vó Ana disse-me também que o caranguejo falou tanto dos outros que perdeu o pescoço e caiu dentro do poço. Quando alguém quiser falar da vida alheia, bom lembrar antes do que aconteceu com o caranguejo.

Quando digo que é preciso acender a natureza com amor, King, um cão grande e peludo, dá voltas na mente. Pelo ruivo, cheio de brilho sob o sol do verão, eu tive com ele aventuras incríveis. Patas no meu peito até hoje me festejam. King era bom ator com salto e sobressalto, entre latidos com a sonoridade de hinos. Na cidade, no campo, na floresta, em qualquer canto onde estivesse King era uma festa.

Uma das maravilhas da natureza é o beija-flor. Graça, encanto, cor. No corrupio, no frufru. De flor em flor, miniaturazinha de ventilador. Num de seus cantos à beleza, a natureza teceu a rosa para receber o beija-flor. “Esta é a minha vida no ar, sonhar e amar”, a rosa no jardim murmura ao beija-flor.

Fina saliência de uma verde trama ocorre na natureza com a esperança. Move-se em hesitante tremor fina nervura translúcida. Esqueletinho leve que no toque comove. Sempre a esperança. Quando descobre a esperança, tecendo suas finas saliências na seda da rosa, o canário começa a saudar o claro dia. Tocando nas cordas do sol, solta do bico pingos de ouro esse músico divino. A cantiga mais bela repercute no dia, tudo ao redor é silêncio. Parece o paraíso de novo amanhecendo.

Na natureza tudo é vida ou morte. O leão com uma trompa vibrante destampa o elétrico no ar, o medo propaga-se além do chão. A hiena na gargalhada consiste em ser o próprio espectro da morte. A cobra persegue na forquilha o estar inocente da vítima, atônita não tem escape. No encontro o pesponto, arremate. Fim em ziguezagueante sorte.

Na natureza ninguém mata por prazer. Tudo é vida ou morte, mas com ordem.
Cyro de Mattos

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