terça-feira, junho 22

Memoráveis

 Vin Ganapathy
Então foi assim, meus amigos. Éramos cem. Saímos pela porta lateral, passámos por um tapume, encaminhámo-nos para a Rua Garrett, Chiado acima, depois atingimos as duas igrejas, já seriam umas três horas da madrugada, e no Largo Camões não havia vivalma. Não havia rumor, não havia estrondos, não havia sirenes, não havia polícia, e nós pensámos. Teremos mesmo nós cem colocado a gravação no ar? Foi mesmo verdade, ou foi um sonho, que à meia-noite e vinte o som dos passos começou a rolar pelo país fora, e depois dos passos do coro veio a voz do Zeca? A canção do Zeca? O cante dele? A sua voz alternando com a voz dos companheiros? Meu Deus! Tanto silêncio, tamanha calma, pensámos, nós cem, quando parámos entre as duas igrejas. Possivelmente terá sido uma fantasia das nossas cabeças, nós cem não teremos colocado a fita no ar, a canção não terá passado, ninguém neste país a terá escutado, nenhum civil, nenhum militar em nenhum quartel, em nenhum regimento, e era por isso que nada iria acontecer. Pensámos nós, os cem. E nenhuma árvore se agitou, nenhuma ave se moveu. Quando julgávamos que todos os rios subterrâneos corriam para o mesmo lado, afinal todas as águas tinham ficado paradas no fundo dos seus abismos. Pensámos nós dois, quando, ambos, perdão, nós cem, caminhávamos em passeios diferentes, devidamente afastados uns dos outros, como se não nos conhecêssemos. Os nossos cem corações batiam de medo debaixo das cem camisas. Foi assim, naquela madrugada...
Lídia Jorge, "Os Memoráveis"

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