sexta-feira, junho 11

Um dos melhores livros do mundo

Quando o pai de Annie Ernaux morre, na segunda página do livro, não há melodrama — nem na cena contida da casa da família, onde ninguém faz escândalo, nem na sua escrita sóbria, desassombrada e surpreendentemente intensa. “O lugar”, traduzido por Marília Garcia para a novíssima editora Fósforo (que começo auspicioso!), é a história desse pai, da própria Annie e da distância que se abre entre eles à medida em que ela progride nos estudos e se afasta das suas origens humildes.

O pai nasceu na virada do século, teve de sair da escola aos 12 anos para trabalhar numa fazenda, foi para o Exército, tornou-se operário, depois abriu um pequeno café com mercearia numa cidade do interior. Sério e trabalhador, tinha imenso cuidado com os gestos e com as palavras, inseguro sobre o seu lugar no mundo.

Um dia diz à filha, orgulhoso: “Eu nunca te fiz passar vergonha.” O fato de a frase precisar ser dita, e de ter sido registrada, prova o seu oposto. Escrever foi a maneira que Annie encontrou para prestar contas do passado e explicar o que aconteceu, “todas essas coisas”. A epígrafe de Jean Genet resume: “Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu”.

“O lugar” foi publicado em 1983 pela Gallimard, foi premiado e conquistou uma legião de leitores e discípulos para Annie Ernaux, hoje uma das escritoras mais reverenciadas da França. Ninguém precisa ler mais do que as 70 páginas desse livro extraordinário para entender o porquê.

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“O outono da Idade Média”, de Johan Huizinga, é um dos melhores livros do mundo: #prontofalei.

Sei muito bem como é temerário fazer uma afirmação dessas num mundo com tantos e tão bons livros, mas há mais de cem anos esse prodígio encanta leitores e os transporta no tempo. Muita gente se apaixonou irremediavelmente pela Idade Média a partir da sua leitura, ainda que, desde 1919, acadêmicos tenham torcido o nariz para a sua excessiva legibilidade — pois “O outono” é tanto estudo de História quanto grande literatura, e comete em abundância o pecado de não ser chato.

Johan Huizinga nasceu em Groningen, nos Países Baixos, em 1872. Um dia, quando estava com 35 anos, teve uma súbita revelação sobre a cultura da sua região nos séculos XIV-XV: ali não houvera um Renascimento, como queriam tantos dos seus colegas, mas, ao contrário, o fim de uma época. Basicamente (mas muito basicamente mesmo: como falar de uma obra dessa magnitude em três parágrafos de jornal?) assim nasceu “O outono da Idade Média”.

Os leitores brasileiros andavam órfãos desse livro querido desde 2010, quando saiu a edição magistral da falecida Cosac Naify, um tour de force com tradução original do holandês, capa dura, centenas de ilustrações e preço estratosférico nos sebos que ainda o negociam.

Agora aquela ótima tradução de Francis Petra Janssen foi republicada pela Penguin numa versão mais despojada, como é feitio da editora, sem ilustrações, mas com o posfácio de Anton Van Der Lem, nova introdução de Naiara Damas e preço viável.

Não se pode ter tudo na vida, afinal.

A favor da edição da Penguin contam o formato e o peso: agora é possível ir dormir na companhia do livro. Isso é importante porque, uma vez que se começa a ler “O outono da Idade Média”, é muito difícil parar.
Cora Rónai 

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