Cento e quatro? dissera o médico. Sei bem que se trata de graus Fahrenheit; deve ser o equivalente a 40 centígrados; mas o número 104 me impressiona; a água ferve aos 100 graus, já devo ter fervido. Tentarei erguer-me, preciso desligar a televisão. Acendo a luz, que me bate dolorosamente nos olhos. Procuro os cigarros; o médico me mandou parar de fumar “a couple of days”; fácil para ele dizer isso: uns dois dias, “a couple of days”; mas para um homem estrangeiro e só, em um horrível quarto de hotel da Broadway, isso é uma eternidade que se subdivide vagamente em uma, duas horas de sono atormentado, quatro, cinco horas de vigília e muitas vezes um torpor neutro, com pesadelos quase acordados, tanta gente discutindo dentro de meu quarto em que na verdade não há ninguém.
“Catch a cold”, pegar um resfriado, coisa banal; mas o segundo médico me deu penicilina, depois suspendeu; examinou-me a língua, a garganta, as costas, o peito, os ouvidos; tomou-me a temperatura, me fez algumas perguntas capciosas e disse a palavra terrível: vírus. Vírus em português já não presta; mas enfim, a gente se acostuma; mas com a pronúncia inglesa a palavra toma outro sentido. Não é mais vírus, é “vairâss” ? algo que provavelmente mata milhões na Ásia, uma peste devastadora…
“Vairâss”… e, ouvindo essa palavra, todos os amigos me olharam com espanto e se afastaram com medo: “vairâss”… E fiquei aqui solitário, o condenado, o empesteado, o morituro, o pária.
Ei-los aqui, porém, os Smith Brothers, meus últimos amigos. Velhos amigos que eu não conhecia por minha desídia; mas quando fui comprar cigarros lá embaixo, no hotel, eu os vi, que ofereciam por 10 cêntimos suas pastilhas pretas para tosse. Um dos Smith tem as barbas longas; o outro, curtas. Como se chamarão, os Smith?
Um deles bem poderia ser o Augusto Frederico, ou um seu avô. Verdade que o nosso poeta tem um “ch” entre o “S” e o “m”; mas isso pode ser aquisição do poeta, homem vivo e desenvolvimentista, e opal. Opal, quer dizer, da Opa. Estou com febre, dei para inventar palavras: morituro, opal… Opal é o Schmidt, morituro sou eu, no meu quarto de hotel. Essa última frase, bem pensando, dava rima em Portugal: eles têm a pronúncia meio resfriada, “eu” pode rimar com “hotel”; e por que não “d’hotel” no lugar de “de hotel”? Por que meus avós vieram para o Brasil? Nascido em Portugal eu seria um poeta português, não tenho dúvida. Cronista de jornal é que não seria; não teria vez com a imprensa escravizada ao chato Salazar; então daria para poeta ou, quem sabe, charadista. Ou enxadrista. Estou com febre.
Os Smith não me encaram; olham de banda; são bons sujeitos que dedicaram o último quartel do século dezenove a fazer essas balinhas pretas destinadas a aliviar minha tosse mais de 50 anos depois; mas por que um traz as barbas curtas, o outro, longas? Sob o retrato de um está escrito trade; sob o outro, mark. Imagino que se chamavam assim os bons irmãos, o Trade Smith e o Mark Smith. Hoje em dia a “Smith Brothers, Inc.” oferece três pacotes de balas grátis a quem comprar uma caneta esferográfica por 25 cêntimos; mas se cada pacote custa 10 cêntimos! O negócio é bom demais, dá para desconfiar; estou com pouco dinheiro nos Estados Unidos, não posso aplicar meu capital assim às loucas.
Vou morrer. Os irmãos Smith me enterrarão, todos dois chapéus na mão; Otávio Xavier Ferreira, que foi meu primeiro secretário de jornal e hoje é subchefe do Escritório Comercial do Brasil em Nova Iorque, virá em nome do governo da república brasileira e dos antigos companheiros de redação fazer uma despedida de mim, dizendo: “he got virus and then he died; good night, sweet prince”!
E sorrirá, sabendo o quanto eu morri amargo, e plebeu, o quanto!
Rubem Braga
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