terça-feira, junho 1

Esse gatilho não é o do Bolsonaro

As pessoas querem parecer bonitas, o que lhes é de todo direito, e nesse fito tem as que vestem um pretinho básico sobre o corpo, outras tantas que fazem harmonização facial, e há ainda aquelas que, na ânsia louca de se fazerem notadas também pela inteligência, perfumam as palavras com extravagâncias. Elas causam. Protagonizam. Estartam processos de empoderamento.

De tempos em tempos a língua se monta de “a nível de” ou “enquanto mulher”. Adora uma moda. Há quem lhe pregue um piercing, há quem prefira falar “resiliência”, e lá vai ela, com essas bonitezas sazonais, se vestindo para os novos dias – ou você não sabe que podólogo agora apresenta-se no cartão como “coach de pés”?

Foi aí que na semana passada a minha amiga, a pretexto do antúrio que plantou na varanda da cobertura, me disse no meio da conversa ter a flor lhe disparado um gatilho.

 Irina Sztukowski

Eu tenho levado muitos sustos com o disparo a torto e a direito de palavras como “disruptivo”. Eu julgava que estavam para sempre sepultadas na santa paz do cemitério delas, o dicionário. Eis que de súbito se mostram semanticamente botocadas, em situação de pertencimento aos tempos e, na companhia desses tantos clichês, vão à luta como se não houvesse amanhã. Elas tentam se fazer resilientes.

Essas palavras da moda surgem disponibilizadas, de preferência assim, com muitas sílabas, em bocas que buscam um hálito de hortelã mais intelectualizado. Agregam valor. Cansadas de simpatia, preferem hidratar os lábios com empatia, uma espécie de afeição com ar mais culto, quase sociologia. Empatizar atualizou o beijo no coração. O gatilho que a minha amiga viu no antúrio é a nova flor desse jardim do Lácio.

De início, achei que o gatilho era uma tentativa de ela adubar ideologia no jardim da nossa conversa, uma alusão sutil às seis armas permitidas a cada cidadão de bem no tocante ao bolsonarismo. Seria, como se diz agora, uma narrativa de esquerda. Minha amiga estaria associando a espádice da flor, aquela haste amarela em meio à folha vermelha, com o gatilho de um revólver. Não era. Mais tarde, usando outro verbo de sucesso na passarela da afetação gramatical, mitiguei o erro. Pedi desculpas pela distopia tóxica.

“Você precisa pensar fora da caixinha”, ela disse com a língua vestindo agora um outro parangolé da estação. “Sai dessa zona de conforto e seja mais assertivo.”

O gatilho do antúrio pega uma carona no vocabulário da psicologia, onde é empregado para identificar algo que desencadeia a viagem da memória. Eu prefiro a madeleine do Proust, o bolinho que ao ser molhado na xícara de chá evocava a infância – mas isso é moda antiga. Mais por fora que umbigo de vedete, não tem resiliência.

O gatilho embutido na flor da cobertura da Zona Sul jogava minha amiga de volta ao quintal no interior do estado e, apesar de ser o novo clichê a evitar, de lembrar pólvora numa cidade já tão cheia dela, ele disparava felicidade. É o que importa. Suavizei a ira semântica e ressignifiquei a contrariedade com o vocabulário ostentação. Na despedida, alavanquei juras sinceras de eterna empatia.

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