De que vivia o casal? De uma chaga que o tio Pedro tinha na perna e que alimentava, mantendo-a sempre aberta, roxa e pustulosa, com o suco irritante de ervas cáusticas. Quatro farrapos em torno, a perna exposta à porta, mostrando aos transeuntes a nojenta úlcera coberta de pus e de moscas, e eis a fonte de renda que dava a pitança ao casal. De resto, uma velha carabina auxiliava a caridade pública, fornecendo para os dias de festa pratos saborosos de caça do campo. O podengo mantinha-se à custa do próprio esforço, perseguindo o tatu na planície e mendigando ossos, aqui e ali, nas herdades da vizinhança. Quanto à vaca, tinha sempre na frente do seu estômago a vasta extensão da campina onde retouçava o broto tenro da barba de bode.
A chaga do tio Pedro, começara pequenina e insignificante. Um dia, ao saltar uma cerca, um espinho entrara-lhe na perna esquerda, um pouco acima do tornozelo. Tio Pedro sentiu a dor mas não fez caso. No dia seguinte, a perna estava vermelha, bastante quente e inflamada e todavia no lugar onde entrara o espinho só havia um ponto escuro, um pequenino ponto azulado que lembrava a picada de um alfinete.
Depois, esse ponto começou a purgar e a engrandecer, mas o calor passara. Volvido um mês, o ponto escuro já tinha o diâmetro de uma moeda de níquel de 100 réis, mas apresentava indícios de querer cicatrizar. Foi quando a mulher do tio Pedro uma velhinha encarquilhada, mais ladina ainda que o marido — atentando no tamanho da chaga que lembrava o do níquel, teve a ideia luminosa e prática de extrair níqueis da ferida. E expôs a sua ideia ao marido, que a achou esplêndida. Começaram então os dois na faina ardorosa de impedir a cicatrização da chaga. Ao princípio, lembraram-se da urtiga, cujos pelos excretam um líquido urente, que irrita e queima; e aplicada a planta à chaga, esta efetivamente aumentou. Mas a urtiga produzia dores, coisa de que o tio Pedro não gostava. Procuraram então outras ervas que alimentando a chaga, não produzissem dores. Com labor e paciência, acharam. Estava garantida a subsistência do casal.
Vagarosamente, maciamente, com a lentidão da lesma, começou essa chaga a se alastrar pela perna acima como um líquen; ao fim de alguns meses, tinha rodeado o tornozelo e, passado um ano, já invadia a região da tíbia e do perônio até o meio. Mas não doía e chamava o níquel. Todavia, à medida que a chaga aumentava, tio Pedro diminuía em peso e descorava; mas, como na choupana não havia balança nem espelho e o apetite era bom, tio Pedro não se apercebia da fuga das cores nem do desfalque em quilogramas. Pelo seu lado, a ardilosa mulher do tio Pedro, que tinha o defeito orgânico de ser míope, também não via... senão a ferida, essa amada úlcera, que não fechava nunca e que lhe proporcionava meios de ter o estômago farto e de dormir noites tranquilas.
Demais, a magreza e a palidez macilenta do velho aumentavam o efeito da chaga, armando a compaixão do transeunte, forçando-o a dar com maior liberalidade a esmola.
Nessa exploração feliz o casal atravessou três anos sem sofrer provações. A ferida chegava então ao joelho, começava a dobrar a rótula e ameaçava invadir a coxa mal fornida de carnes. Quase reduzido a pele e osso, o tio Pedro já sentia uma fraqueza que o intimidava. Foi quando ele percebeu que o peso lhe minguava e que, com a fuga do peso, o alento desaparecia.
Teve então ideia de impedir a marcha ascendente da úlcera, reduzi-la mesmo, fazendo-a retroceder até o meio da perna. Assim como assim, tanto vinha o níquel com uma chaga de dois palmos, como uma de quatro polegadas. Mas, ou porque a ferida já se habituara a subir ou porque a mulher do tio Pedro não descobrisse a erva que devia fazê-la descer, o certo é que a chaga alastrou sempre e, depois de galgar o joelho, invadiu francamente a coxa. E o pior é que quando mais mezinhas lhe aplicavam para fazê-la secar e retrair-se, mais ela purgava, avançando sempre.
No começo do inverno, quando a primeira geada cobriu a planície, crestando as ervas tenras e devorando assim a provisão da vaca, tio Pedro percebeu que já lhe era difícil sair da cama e arrastar-se até a porta da choupana para expor a úlcera. Teve então a primeira suspeita de seu próximo fim e chamando a mulher pediu-lhe que procurasse um tabelião e o levasse à choupana.
Um tabelião!... para quê?
Teria o tio Pedro uma fortuna oculta, conservada pela sua avareza no fundo de algum buraco, sem que a mulher o soubesse jamais?
O velho nada explicou e a mulher, sempre ladina, alentada pela esperança de uma riqueza inesperada, que depois da morte do marido viesse suprir a falta de chaga pingue, prestes a desaparecer para sempre, nada inquiriu. Foi ao povoado e de lá trouxe o tabelião.
O que se passou entre o notário e o moribundo, a mulher do tio Pedro só o soube depois que o velho fechou os olhos para sempre.
O finado tinha feito o testamento e este testamento era assim redigido:
"Deixo a vaca, uma espingarda e um cão; à minha mulher deixo o cão, e do produto da venda da vaca e da espingarda mandará ela rezar missas pelo descanso da minha alma."
Era só isto. Nada de mais conciso, nada de mais previdente, nada de mais liberal.
Sorridente e irônico, o tabelião perguntou à viúva se ela, como legatária e testamenteira, estava resolvida a satisfazer as disposições um tanto extravagantes e mesmo ilegais do testamento do seu defunto marido. E a velha encarquilhada, sem mostrar pesar nem espanto, respondeu serenamente "que sim".
Oito dias depois, realizava-se a feira mensal no povoado e a mulher do tio Pedro, de espingarda ao ombro, como uma vivandeira, tangendo na sua frente a vaca e acompanhada pelo cão, seguiu para a feira e ali procurou lugar azado para realizar a venda das coisas que levava. Um comprador apresentou-se e indagou o preço da vaca.
— Doze vinténs, respondeu, muito séria, a mulher do tio Pedro.
— Doze vinténs!... repetiu o camponês, olhando admirado para a velha.
— Sim, senhor, doze vinténs, nem mais nem menos, mas tem uma condição, respondeu a velhinha, sem se perturbar com o olhar desconfiado do campônio.
E qual é a condição?
— É esta: quem comprar a vaca há de comprar também a espingarda e o cão.
— Hom'essa!
— É como lhe disse: a vaca só será vendida juntamente com o cão e a espingarda.
— E qual é o preço, boa mulher, da espingarda e do cão?
— A espingarda — treze vinténs, o cão trezentos mil réis.
Cada vez mais espantado, sem compreender o estratagema da legatária finória, o campônio pôs as mãos nas ilhargas e desatou a rir, a rir, de tal sorte, que atraiu a atenção de toda a feira.
E daí a pouco, toda a gente que ali estava, sabia este caso original e estranho; que a viúva do tio Pedro pedira doze vinténs pela vaca, exigia treze pela espingarda, e trezentos mil réis, "sub conditione, sine qua non", de vender tudo ao mesmo comprador.
Como a vaca era nova, com fama de boa leiteira, valia bem os trezentos mil e quinhentos réis (que era o preço de tudo), o camponês, depois de muito indagar inutilmente pela razão da original exigência da velha, fechou o negócio, pagando a quantia pedida, e da feira partiu levando a vaca, o cão e a espingarda.
Então a viúva do tio Pedro, visivelmente satisfeita e com a consciência tranquila, foi em demanda da casa do vigário da freguesia e perguntou ao bom padre:
Senhor vigário, seria Vossa Reverendíssima capaz de dizer, por quinhentos réis, uma missa por alma do meu Pedro, que Deus haja na sua guarda?
O vigário, que ignorava o que se passara e que sabia das circunstâncias precárias da velha, respondeu logo:
— Com todo o prazer, boa mulher! onde não há el-rei o perde.
— Pois então, aqui tem os quinhentos réis, senhor vigário, e queira dizer a missa por alma do defunto Pedro.
Daí partiu logo para a casa do tabelião, com o fim de provar perante testemunhas que havia satisfeito as disposições testamentárias de seu finado marido.
E foi assim que a espertalhona viúva do tio Pedro demonstrou que o cão leproso, que o marido lhe deixara, valia tanto como a chaga que ele alimentara durante três anos, chaga essa que o velho, egoísta e avaro sempre, levara para baixo da terra, talvez com o intuito de explorar com ela, no outro mundo, a caridade das almas imbecis ou demasiado compreensivas.
Garcia Redondo
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