Em agosto de 1992, quando os dias de canícula chegavam ao fim, pus-me a caminhar pelo condado de Suffolk, no leste da Inglaterra, na esperança de escapar ao vazio que se alastra em mim sempre que termino um longo trabalho. E de fato essa esperança cumpriu-se até certo grau, pois poucas vezes me senti tão desobrigado como na época, vagando horas e dias a fio pela faixa de território em parte só parcamente povoada que se estende pelo interior a partir da costa. De outro lado, porém, parece-me agora que a velha superstição, segundo a qual certas doenças da alma e do corpo se infundem em nós de preferência sob o signo da Canícula, tem provavelmente sua justificativa. Seja co mo for, na época que se seguiu me ocupei tanto com a lembrança do agradável senso de liberdade quanto com o horror paralisante que me acometia em diversos momentos, em face dos traços de destruição que, mesmo nessa região longínqua, remontavam até o passado distante. Talvez tenha sido por causa disso que, exatamente um ano após o dia em que dei início à minha viagem, fui levado num estado de quase total imobilidade ao hospital de Norwich, a capital da província, onde então, ao menos em pensamento, comecei a redigir estas páginas. Ainda me lembro precisamente como, logo após dar entrada em meu quarto situado no oitavo andar do hospital, fui esmagado pela ideia de que as amplidões percorridas no verão anterior em Suffolk haviam agora encolhido definitivamente a um único ponto cego e surdo. Da minha cama, de fato, não se podia ver mais nada do mundo a não ser uma nesga pálida do céu, emoldurada pela janela.
O desejo que eu sentia várias vezes ao longo do dia de me certificar da realidade, que eu temia ter desaparecido para sempre, olhando por essa janela de hospital, estranhamente protegida com uma rede preta, ficava tão forte quando vinha o crepúsculo que, após conseguir de algum modo escorregar pela borda da cama até o chão, meio de barriga, meio de lado, e alcançar de quatro a parede, eu me erguia, apesar das dores, içando-me a custo até o parapeito da janela. Na postura contorcida de uma cria tura que se alçou ereta pela primeira vez, eu ficava encostado contra o vidro e pensava involuntariamente na cena em que o pobre Gregor Samsa, as perninhas trêmulas, escala a poltrona e olha para fora do quarto, com uma lembrança indistinta, assim ele diz, da sensação de liberdade que antes lhe propiciava olhar pela janela. E tal como Gregor, com os olhos turvos, não reconhecia mais a Charlottenstrasse, a rua calma onde ele morava fa zia anos com a família, tomando-a por um deserto cinza, assim também me parecia totalmente alheia a cidade a mim familiar, que se estendia dos pátios do hospital até os longes do horizonte. Eu não conseguia imaginar que no labirinto de edifícios lá embaixo ainda houvesse alguma coisa viva; antes, era como se olhas se de cima de um penhasco para um mar de pedra ou um campo de entulhos, do qual as massas tenebrosas dos prédios de estacionamento se erguiam como gigantescos blocos erráticos. Nessa hora de lusco-fusco, não se via nenhum passante na vizinhança imediata, exceto uma enfermeira cruzando os tristes jardins da entrada, a caminho do turno da noite. Uma ambulância com luz azul avançava do centro da cidade para o pronto-socorro, dobrando lentamente várias esquinas. O som da sirene não chegava até mim. Na altura em que me encontrava, estava envolto num silêncio quase completo, por assim dizer, artificial. Só se ouviam as rajadas de vento que varriam o país lá fora, fustigando a janela, e às vezes, quando cessava tal ruído, o zunido incessante em meus próprios ouvidos.
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