De tudo estou agradecido, senhor doutor. Levei seu tempo, só de graça. O senhor me há-de chamar de burro. Já sei, aceito. Mas, peço desculpa, se faz favor: o senhor, sabe o que da minha pessoa? Não sou como outros: penso o que aguento, não o que preciso. O que desconsigo não é de mim. Falha de Deus, não minha. Porquê Deus não nos criou já feitos? Completos, como foi nascido um bicho a quem só falta o crescimento. Se Deus nos fez vivos porque não deixou sermos donos da nossa vida?
Assim, mesmo brancos somos pretos. Digo-lhe, com respeito. Preto o senhor também. Defeito da raça dos homens, esta nossa de todos. Nossa voz, cega e rota, já não manda. Ordens só damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo esses começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno fazer os outros mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado pelos maiores. Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão como que podem acreditar no céu?
Descompletos somos, enterrados terminamos. Vale a pena ser planta, senhor doutor. Mesmo vou aprender a ser árvore. Ou talvez pequena erva porque árvore aqui dentro não dá. Porque os baloii (Baloii: feiticeiros, deitadores de sorte {plural de nóii}) não tentam de ser plantas, verde-sossegadas? Assim, eu não precisava matar Carlota. Só lhe desplantava, sem crime, sem culpa.
Só tenho medo de uma coisa: de frio. Toda a vida sofri do frio. Tenho paludismo não é no corpo, é na alma. O calor pode apertar: sempre tenho tremuras. O Bartolomeu, meu cunhado, costumava dizer: “fora de casa sempre faz frio.” Está certo. Mas eu, doutor, que casa eu tive? Nenhuma. Terra nua, sem aqui nem onde. Num lugar assim, sem chegada nem viagem, preciso aprender espertezas. Não dessas que avançam na escola. Esperteza redonda, esperteza sem trabalho certo nem contrato com ninguém.
Nesta carta última o senhor me vê assim, desistido. Porquê estou assim? Porque o Bartolomeu me visitou hoje e me contou tudo como se passou. No enfim, compreendi o meu engano. Bartolomeu me concluiu: afinal a sua mulher, minha cunhada, não era uma nóii. Isso ele confirmou umas tantas noites. Espreitava de vigia para saber se a mulher dele tinha ou não outra ocupação nocturna. Nada, não tinha.
Nem gatinhava, nem passarinhava. Assim, Bartolomeu provou o estado de pessoa da sua esposa.
Então, pensei. Se a irmã da minha mulher não era nóii, a minha mulher também não era. O feitiço mal de irmãs, doença das nascenças. Mas eu como podia adivinhar sozinho? Não podia, doutor.
Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este seu mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor: justiça só pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar.
Agora já é tarde. Só reparo o tempo quando já passou. Sou um cego que vê muitas portas. Abro aquela que está mais perto. Não escolho, tropeço a mão no fecho. Minha vida não é um caminho. É uma pedra fechada à espera de ser areia. Vou entrando nos grãos do chão, devagarinho. Quando me quiserem enterrar já eu serei terra. Já que não tive vantagem na vida, esse ser o privilégio da minha morte.
Mia Couto, "Vozes anoitecidas"
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