sábado, abril 30
A casa estava quieta e o mundo calmo
Bleekrode Meijer |
Leitor tornou-se livro, e a noite de verão
Era como o ser consciente do livro.
A casa estava quieta e o mundo calmo.
Palavras eram ditas como se livro não houvesse,
Só que o leitor debruçado sobre a página
Queria debruçar-se, queria mais que muito ser
O sábio para quem o livro é verdadeiro
E a noite de verão é como perfeição da mente.
A casa estava quieta porque tinha de estar.
Estar quieta era parte do sentido e da mente:
Acesso da perfeição à página.
E o mundo estava calmo. Em mundo calmo,
Em que não há outro sentido, a verdade
É calma, é verão e é noite, a verdade
É o leitor insone debruçado a ler.
Wallace Stevens
Festa
Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis branco, um mais velho e outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos.
Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.
O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.
– Duzentos e vinte.
O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido.
– Que tal o pão com molho? – sugere o rapaz.
– Como?
– Passar o pão no molho da almôndega. Fica muito mais gostoso.
O homem olha para os meninos.
– O preço é o mesmo – informa o rapaz.
– Está certo.
Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida.
O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e, em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira.
Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até a boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado do pão.
O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.
Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.
Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.
O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.
– Duzentos e vinte.
O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido.
– Que tal o pão com molho? – sugere o rapaz.
– Como?
– Passar o pão no molho da almôndega. Fica muito mais gostoso.
O homem olha para os meninos.
– O preço é o mesmo – informa o rapaz.
– Está certo.
Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida.
O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e, em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira.
Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até a boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado do pão.
O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.
Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.
Wander Piroli
sexta-feira, abril 29
Não se empresta o amigo
Os livros são amigos perfeitos. Mas há uma coisa que eles não podem suportar: é serem emprestados. Ficam, então, tão contrariados que não retornam jamaisRobert de Flers
Noitada anarquista
O velho bairro me acolheu. A pequena igreja estava na penumbra, apagada e irreal. De repente, veio-me à memória o acontecimento daquela noite, a misteriosa ogiva com sua enigmática inscrição de letras luminosas a dançarem furtivas. Que dizia o letreiro? “Entrada só para os raros” e “Só para loucos”. Olhei inquisitivamente para os velhos muros, desejando secretamente que o prodígio se repetisse, que a inscrição me convidasse como louco, que a porta me deixasse entrar. Ali, provavelmente, estaria o que eu desejava, ali, talvez, interpretassem minha música. Resignado, olhava o escuro muro de pedra, cercado de trevas, imerso profundamente em seu sono. E não havia nenhuma porta nem arco ogival, só o escuro e silencioso muro sem aberturas. Passei adiante sorrindo, saudei amistosamente o muro. “Durma bem. Não vou acordá-lo. Qualquer dia será derrubado ou o cobrirão de anúncios de firmas cobiçosas de dinheiro: mas agora, ainda está aí, belo e quieto como sempre, e eu o amo por isso.” Saindo de um escuro beco, surgiu à minha frente, assustando-me, um indivíduo, um solitário caminhante que tarde se recolhia ao lar; de passo fatigado, com gorro na cabeça, uma blusa azul, levava ao ombro um pau donde pendia um cartaz e, diante do ventre, preso por correias, um pequeno caixote, como os vendedores ambulantes de feira. Lento, caminhava à frente; ao passar por mim não se voltou para olhar-me, pois se o tivesse feito, até que o teria cumprimentado e possivelmente lhe daria um cigarro. À luz do poste seguinte, tentei ler seu estandarte, o anúncio vermelho cravado na extremidade da haste; mas esta oscilava tanto que não consegui decifrar nada. Chamei o homem e lhe pedi que me mostrasse o placar. Deteve-se e segurou a haste um pouco mais erguida, de modo que pude soletrar em caracteres maiúsculos e inseguros:
— Estava à sua procura — exclamei alegre. — Que noitada é essa? Onde é? Quando vai ser?
O homem continuou a caminhar.
— Não é para qualquer um — disse indiferente, com voz sonolenta, e continuou seu caminho.
— Espere — gritei, correndo atrás dele. — Que leva nessa caixa? Gostaria de comprar-lhe alguma coisa.
Sem se deter, apanhou um folheto na caixa, mecanicamente, entregou-o a mim. Apanhei e guardei-o. Enquanto desabotoava o casaco para tirar dinheiro, o homem desapareceu por um portão, que se cerrou às suas costas. No pátio, ouvi soarem ainda seus passos pesados: primeiro, nas lajes do pavimento; depois, a subir uma escada de madeira; e não ouvi mais nada. Foi quando, de repente, me senti também muito cansado e tive a sensação de que era muito tarde e que seria conveniente regressar a casa. Corri apressado, e logo me encontrei em meu quarteirão, após atravessar as adormecidas ruelas do arrabalde, onde moravam, em pequenas casas muito limpas, atrás de um pouco de grama e hera, funcionários públicos e pequenos pensionistas. Passando diante da hera, diante da grama, diante do pequeno abeto, cheguei à porta de casa, procurei o buraco da fechadura, achei o interruptor da luz, deslizei pela porta envidraçada, passei diante dos armários envernizados e do vasos de planta e me enfurnei em meu quarto, em minha pequena aparência de lar, onde me esperava a poltrona e a estufa, o tinteiro e a caixa de tintas, Novalis e Dostoievski, assim como aos outros homens, os homens verdadeiros, os esperam quando voltam a casa a mãe ou a mulher, os filhos, os criados, os cães e os gatos. Quando tirei o casaco úmido, voltou a cair-me entre as mãos o pequeno folheto. Era um livrinho delgado, impresso em papel muito ruim; um livreto de feira, como aqueles fascículos intitulados O Homem que Nasceu em Janeiro ou Como Tornar-se Vinte Anos Mais Jovem em Oito Dias Mas, quando me achava acomodado na poltrona e pusera os óculos para ler, com grande admiração e com a sensação repentina de que ali estava encerrado o meu Destino, dei com o título que figurava na capa do opúsculo: Tratado do Lobo da Estepe. Somente para os raros. E seguia o conteúdo do livreto, que li de um só fôlego, em contínuo e crescente interesse.
Hermann Hesse, "O Lobo da Estepe"
NOITADA ANARQUISTA!TEATRO MÁGICO! ENTRADA SÓ PARA RA...
— Estava à sua procura — exclamei alegre. — Que noitada é essa? Onde é? Quando vai ser?
O homem continuou a caminhar.
— Não é para qualquer um — disse indiferente, com voz sonolenta, e continuou seu caminho.
— Espere — gritei, correndo atrás dele. — Que leva nessa caixa? Gostaria de comprar-lhe alguma coisa.
Sem se deter, apanhou um folheto na caixa, mecanicamente, entregou-o a mim. Apanhei e guardei-o. Enquanto desabotoava o casaco para tirar dinheiro, o homem desapareceu por um portão, que se cerrou às suas costas. No pátio, ouvi soarem ainda seus passos pesados: primeiro, nas lajes do pavimento; depois, a subir uma escada de madeira; e não ouvi mais nada. Foi quando, de repente, me senti também muito cansado e tive a sensação de que era muito tarde e que seria conveniente regressar a casa. Corri apressado, e logo me encontrei em meu quarteirão, após atravessar as adormecidas ruelas do arrabalde, onde moravam, em pequenas casas muito limpas, atrás de um pouco de grama e hera, funcionários públicos e pequenos pensionistas. Passando diante da hera, diante da grama, diante do pequeno abeto, cheguei à porta de casa, procurei o buraco da fechadura, achei o interruptor da luz, deslizei pela porta envidraçada, passei diante dos armários envernizados e do vasos de planta e me enfurnei em meu quarto, em minha pequena aparência de lar, onde me esperava a poltrona e a estufa, o tinteiro e a caixa de tintas, Novalis e Dostoievski, assim como aos outros homens, os homens verdadeiros, os esperam quando voltam a casa a mãe ou a mulher, os filhos, os criados, os cães e os gatos. Quando tirei o casaco úmido, voltou a cair-me entre as mãos o pequeno folheto. Era um livrinho delgado, impresso em papel muito ruim; um livreto de feira, como aqueles fascículos intitulados O Homem que Nasceu em Janeiro ou Como Tornar-se Vinte Anos Mais Jovem em Oito Dias Mas, quando me achava acomodado na poltrona e pusera os óculos para ler, com grande admiração e com a sensação repentina de que ali estava encerrado o meu Destino, dei com o título que figurava na capa do opúsculo: Tratado do Lobo da Estepe. Somente para os raros. E seguia o conteúdo do livreto, que li de um só fôlego, em contínuo e crescente interesse.
Hermann Hesse, "O Lobo da Estepe"
quinta-feira, abril 28
Anos de guerra, 'anos-biblioteca'
Não é apenas no momento de desarranjos internos que os livros servem de auxílio, mas também quando acontecem crises que afetam simultaneamente um grande número de pessoas. “Nos anos 1930, nos Estados Unidos, a crise, segundo várias análises, levou milhares de norte-americanos para as bibliotecas”, escreve Martine Poulain: “Às vezes, os desempregados buscavam na leitura uma oportunidade de se distanciar do real e de sua própria situação, esperando que ela lhes levasse para 'fora do mundo'. Às vezes, esperavam o contrário, que lhes mantivesse 'dentro do mundo'. A leitura de jornais e periódicos era então a mais apreciada, seja porque a leitura de 'notícias' sancionava essa necessidade de se sentir parte de uma comunidade, seja porque a consulta das ofertas de emprego assinalava mais diretamente uma busca de reintegração”.
Em muitos lugares, a Segunda Guerra Mundial suscitou igualmente um forte aumento das práticas da leitura, fato testemunhado por muitas pessoas, como Thais Nasvetnikova, na Rússia, quando recorda o inverno de 1941: “Lembro que todo mundo lia... muito... eu nunca vi isso... esgotamos a biblioteca destinada às crianças e aos adolescentes. Então nos permitiram ler os livros dos grandes”. Ou Le Clézio, que se encontrava em Nice: “Não podíamos sair, era demasiadamente perigoso. Os caminhos e os campos estavam minados. [...] Assim era impossível vadiar. Não tínhamos muitos amigos, vivíamos confinados. Era preciso ocupar aquele vazio, e os livros estavam lá para isso”. Ou Marina Colasanti, que fala da sua infância na Itália:
“Mas em pleno nomadismo, uma normalidade estável foi criada pelos meus pais, para mim e para meu irmão.Essa normalidade foi a leitura. [...]Quando penso nesses anos, eu os vejo forrados de livros. São meus anos-biblioteca. [...]
Olhava pela janela da nossa sala, via o símbolo do fascio aposto à fachada do Duomo, e lia. Comíamos couve-flor sete dias na semana, um ovo passou a custar uma lira, dizia-se que o pão era feito de serragem, e eu lia. Deixamos a cidade, buscamos refúgio na montanha. Agora, acordando de manhã, todas as manhãs, as colunas de fumaça no horizonte nos diziam que Milão estava debaixo de bombardeios, e eu, ah! eu continuava lendo".
Mais recentemente, no dia seguinte ao 11 de setembro de 2001, em um tempo em que o audiovisual já era onipresente, uma multidão acorria às livrarias nova-iorquinas, enquanto a frequência em todos os outros comércios diminuía: “o público se volta para a leitura para compreender a crise”, relata o Le Monde de 22 de setembro de 2001. Após o primeiro impacto, as pessoas “vieram procurar os livros para superar a dificuldade”, comentou a diretora de uma grande livraria. Na França, os livreiros também constataram um movimento semelhante.
Michèle Petit, "A arte de ler: ou como resistir à adversidade"
Contra o esquecimento e a tirania
O fim para que os homens inventaram os livros foi para conservar a memória das coisas passadas contra a tirania do tempo e contra o esquecimento dos homens, que ainda é maior tiraniaPadre Antônio Vieira
Porque não li 'Ulysses'
Dizem que os escritores são pessoas com defeito de fabricação. Por um enguiço qualquer, na infância ou pré-adolescência, o indivíduo passa a perceber o mundo de forma enviesada. Comigo aconteceu algo parecido. Enquanto meus coleguinhas de classe dirigiam a atenção aos outros coleguinhas de classe, eu tentava decifrar um livro: "Ulysses", de James Joyce.
Ainda imberbe tive a desventura de achar a obra num sebo, em tradução de Antonio Houaiss, pelo Clube do Livro. Adquiri mais pela capa dura, e pelo custo-benefício, do que pelo conteúdo. Em tempos de mesadas curtas, comprava-se literatura assim, no atacado. De mais a mais, essa versão lembrava uma Bíblia. Tê-la em mãos faria avó e mãe julgarem que eu estava me ilustrando em espiritualidades, não em “pornografia” irlandesa.
Quando jovens, temos mais energia. Foi o que me fez pegar a melhor lapiseira e ir anotando todas as palavras que não compreendia no discurso joyceano. A primeira, nunca me esqueço, foi “blasonar”. Mal imaginava o que viria pela frente.
Permaneci focado na obra por dias e dias. Lamentavelmente, só suportei até a página 100. Estou certo, todavia, de que não foi desinteresse pela saga dos Bloom, mas interesse por alguma coleguinha de classe.
Após minha entrada no mundo do sensualismo, veio uma pausa de anos até que me aventurasse a desembrenhar "Ulysses". Já adulto, com filhos, me dei de presente a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Dessa vez resolvi fazer barba, cabelo e bigode. Descolei um alentado guia de leitura de Ulysses. Já no primeiro capítulo, o autor recomendava que, para a boa apreensão do catatau, era preciso antes ler A divina comédia, Tristão e Isolda e Hamlet, além de Retrato do artista quando jovem.
Coloquei Bernardina no fundo da gaveta. Só voltei à obra principal meses depois. Mesmo prenhe de tanta informação de algibeira, de novo o pesadelo: o caos linguístico, as digressões, os neologismos, tudo aquilo me entediava. Como encararia os brothers da Vila Madalena sem ter lido o maldito livro?
A impotência e a vergonha me levaram a pular todas as outras traduções em português pós-Bernardina.
Só sosseguei ao ler "De quanta terra precisa um homem", de Tolstói.
O conto retrata o camponês Pakhóm, obcecado por obter mais e mais terras. Amplia sua propriedade, mas ainda insatisfeito, resolve adquirir terrenos num longínquo território. Lá é desafiado pelo chefe da aldeia: terá todo o chão que conseguir percorrer a pé durante um dia. Desde que, antes de o sol se pôr, retorne ao ponto de partida.
Resumindo a narrativa: Pakhóm correu tanto para descolar mais glebas que caiu morto na linha de chegada. O fecho é assim:
O que Pakhóm teria a ver com Joyce? Para mim, os sete palmos de terra não bastavam ao irlandês. Descontente com o que já conquistara, foi gerando tanto vozerio que acabou, além de cego, mudo.
Carlos Castelo
Ainda imberbe tive a desventura de achar a obra num sebo, em tradução de Antonio Houaiss, pelo Clube do Livro. Adquiri mais pela capa dura, e pelo custo-benefício, do que pelo conteúdo. Em tempos de mesadas curtas, comprava-se literatura assim, no atacado. De mais a mais, essa versão lembrava uma Bíblia. Tê-la em mãos faria avó e mãe julgarem que eu estava me ilustrando em espiritualidades, não em “pornografia” irlandesa.
Quando jovens, temos mais energia. Foi o que me fez pegar a melhor lapiseira e ir anotando todas as palavras que não compreendia no discurso joyceano. A primeira, nunca me esqueço, foi “blasonar”. Mal imaginava o que viria pela frente.
Permaneci focado na obra por dias e dias. Lamentavelmente, só suportei até a página 100. Estou certo, todavia, de que não foi desinteresse pela saga dos Bloom, mas interesse por alguma coleguinha de classe.
Após minha entrada no mundo do sensualismo, veio uma pausa de anos até que me aventurasse a desembrenhar "Ulysses". Já adulto, com filhos, me dei de presente a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Dessa vez resolvi fazer barba, cabelo e bigode. Descolei um alentado guia de leitura de Ulysses. Já no primeiro capítulo, o autor recomendava que, para a boa apreensão do catatau, era preciso antes ler A divina comédia, Tristão e Isolda e Hamlet, além de Retrato do artista quando jovem.
Coloquei Bernardina no fundo da gaveta. Só voltei à obra principal meses depois. Mesmo prenhe de tanta informação de algibeira, de novo o pesadelo: o caos linguístico, as digressões, os neologismos, tudo aquilo me entediava. Como encararia os brothers da Vila Madalena sem ter lido o maldito livro?
A impotência e a vergonha me levaram a pular todas as outras traduções em português pós-Bernardina.
Só sosseguei ao ler "De quanta terra precisa um homem", de Tolstói.
O conto retrata o camponês Pakhóm, obcecado por obter mais e mais terras. Amplia sua propriedade, mas ainda insatisfeito, resolve adquirir terrenos num longínquo território. Lá é desafiado pelo chefe da aldeia: terá todo o chão que conseguir percorrer a pé durante um dia. Desde que, antes de o sol se pôr, retorne ao ponto de partida.
Resumindo a narrativa: Pakhóm correu tanto para descolar mais glebas que caiu morto na linha de chegada. O fecho é assim:
O criado pegou na pá, fez uma cova em que coubesse Pakhóm e meteu-o dentro; sete palmos de terra: não precisava de mais.
O que Pakhóm teria a ver com Joyce? Para mim, os sete palmos de terra não bastavam ao irlandês. Descontente com o que já conquistara, foi gerando tanto vozerio que acabou, além de cego, mudo.
Carlos Castelo
quarta-feira, abril 27
Pintassilgo
Eu desconhecia a extensão do mundo. Minhas palavras minguadas não explicavam minha descrença na esperança. Eu possuía, oculto em mim, também o que eu não sabia dizer. Trazia de cor e decifradas algumas palavras: aturdido, suspeito, profundo, deserto, promessa, solidão e um amor condenado a minguar pelo exílio. Cobiçava conhecer mais palavras para nomear o incômodo perpétuo instalado pela dor.
No lugar de meu irmão veio morar comigo o Pintassilgo. Menino negro como o pássaro. Meu amigo emitia um assobio afinado como flauta soprada por anjo. Saltávamos pelos morros atrás de mais passarinho para conversar. O menino amigo, cantando outros silvos, me fazia fartar-me de fugaz felicidade. E não havia mentira mais verdadeira do que a de supor possível escutar o coração dos pássaros.
Cada despedida se anunciava dando mais sustância às fatias do tomate. O que antes era apenas transparência — hóstia maculada de ameaça — agora se fazia corpo e decretava abandono. As mãos matemáticas da mulher registravam com a faca e a força, e sobre a pele do tomate, suas premeditadas vitórias.
Há dias em que o passado me acorda e não posso desvivê-lo. Esfrego os olhos buscando desanuviar a manhã que embaça o dia. Deixo a cama carregado pelos fados de ontem. Encaminho-me à cozinha sabendo não encontrar brasas cobertas de cinzas. Sorvo um pouco de café, e o sabor do quintal de meu avô já não me vem à boca. Sem possuir um olho de vidro, diviso o mundo vivido do mundo sonhado, com a nitidez da loucura. Meu real é mais absurdo que minha fantasia.
No lugar de meu irmão veio morar comigo o Pintassilgo. Menino negro como o pássaro. Meu amigo emitia um assobio afinado como flauta soprada por anjo. Saltávamos pelos morros atrás de mais passarinho para conversar. O menino amigo, cantando outros silvos, me fazia fartar-me de fugaz felicidade. E não havia mentira mais verdadeira do que a de supor possível escutar o coração dos pássaros.
O correio trouxe notícias da irmã que já não bordava mares com linhas azuis. Sua letra trêmula no envelope indicava o urdimento de estranhas tramas. Pedia à irmã mais nova para — em mais um de seus nascimentos — nascer ao seu lado. Estava só, e havia meses alimentava-se de solidão. Afirmava estar salgando seu prato com lágrimas. Sem mais para dizer-se, despedia suplicando o acordo do pai. A irmã mais nova renasceu para sempre em outro lugar fora do globo, sem o alfinete demarcando a distância.
Cada despedida se anunciava dando mais sustância às fatias do tomate. O que antes era apenas transparência — hóstia maculada de ameaça — agora se fazia corpo e decretava abandono. As mãos matemáticas da mulher registravam com a faca e a força, e sobre a pele do tomate, suas premeditadas vitórias.
Há dias em que o passado me acorda e não posso desvivê-lo. Esfrego os olhos buscando desanuviar a manhã que embaça o dia. Deixo a cama carregado pelos fados de ontem. Encaminho-me à cozinha sabendo não encontrar brasas cobertas de cinzas. Sorvo um pouco de café, e o sabor do quintal de meu avô já não me vem à boca. Sem possuir um olho de vidro, diviso o mundo vivido do mundo sonhado, com a nitidez da loucura. Meu real é mais absurdo que minha fantasia.
O presente é a soma de nostalgias, agora irremediáveis. A memória suporta o passado por reinventá-lo incansavelmente. Tento espantar o presente balbuciando uma nova palavra. Tudo é maio, tudo é seco, tudo é frio.
Bartolomeu Campos de Queiroz, "Vermelho Amargo"
Bartolomeu Campos de Queiroz, "Vermelho Amargo"
Uma criança
Há livros que se lê uma vez e depois joga-se fora. Lidos, esgotaram o que tinham para dizer. Parecem-se com as piadas: as piadas só fazem rir na primeira vez que são contadas. Outros livros, entretanto, são como fontes. A fonte é a mesma. Mas a água que dela brota é sempre fresca, sempre nova, sempre outra água. Retornamos sempre às fontes. Cada retorno é uma felicidade nova. Na minha infância havia uma fonte, um buraco simples em forma de bacia, que me dava grande alegria visitar. Não que eu estivesse com sede. Apenas para me encantar. Daquela fonte nem meu pai nem minha mãe ficaram sabendo. Vocês são os primeiros a quem estou contando. Que felicidade encontrei na minha infância, solto por espaços vazios de olhos adultos! Os adultos estragam o mundo das crianças com os seus olhos. Diante da fonte, minha amiga, eu estava sozinho, absolutamente sozinho. Guimarães Rosa, falando de sua infância, disse que ela foi muito gostosa. A única coisa que a atrapalhava eram os olhos dos adultos que se intrometiam em tudo. Livrou-se disso quando arranjou uma chave para o seu quarto. Trancado, podia gozar livremente os seus devaneios. Esses livros-fonte não são de diversão. São livros de encantamento. A sua leitura é como beber água da fonte, sempre. Por isso sempre voltamos a eles. Um dos livros-fonte que mais me encantam é A poética do devaneio, de Bachelard. Volto sempre a ele e é sempre como se fosse pela primeira vez. Um curto texto que me encanta: “Nos grandes infortúnios da vida, ganhamos coragem quando somos o sustentáculo de uma criança. A inquietação que temos pela criança sustenta uma coragem invencível” (São Paulo, Livraria Martins Fontes, p. 127). Esse livro maravilhoso nunca foi e nunca será best-seller. É uma fonte escondida da qual poucos bebem. Quando muitos bebem na mesma fonte, a água fica poluída. Lembrei-me desse texto ao pensar num dos demônios mais potentes a habitar a alma humana: o tédio. Viver sem razões para viver. Pensei logo: só são atacadas pelo demônio tédio as pessoas que não são sustentáculo de uma criança, que não se inquietam por uma criança. O tédio, nenhum exorcista pode com ele. Nenhum terapeuta sabe as palavras que o afugentam. O tédio se cura com o olhar de uma criança. Há tantas crianças soltas pelas ruas da cidade, prontas a salvar-nos do tédio…
Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"
Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"
terça-feira, abril 26
O assassinato de Proust
A elegância vem do coração. Colecionar diplomas, falar muitas línguas, possuir quadros famosos nas paredes de casa, saber elaborar frases rebuscadas não disfarçam a grosseria de alguém. Falar com cuidado, partilhando as palavras com carinho, quase devoção, é um exercício delicado. Pois as palavras, quando usadas de forma deselegante, podem ferir, e até matar. Fui testemunha de um crime assim.
Certa vez, durante uma aula na faculdade de jornalismo, uma professora disse, ao citar Proust: “Eu sei que vocês não leram e sei que nem devem conhecer o autor, não é leitura para vocês, mas vou citar a famosa obra dele… aquela…” – ela se referia ao clássico robusto Em busca do tempo perdido. A referência a Proust poderia ter iluminado toda aquela classe de alunos tão jovens, recém-saídos da adolescência, trazendo para nós uma narrativa capaz de se expandir como o tecido infinito de um sol sobre o mundo. No entanto, ao dizer “Eu sei que vocês não leram e sei que nem devem conhecer o autor, não é leitura para vocês”, as palavras escaparam da boca daquela professora como navalhas. Fizeram de Proust um defunto no chão da sala. Eu, que já havia lido No caminho de Swann – tinha uma bela coleção em casa e já estava apaixonada pelo autor –, ergui a mão, atrevida, e proferi que conhecia Proust, fazendo questão de deixar escapar detalhes de sua biografia, como sua homossexualidade, só para realçar a minha relação – que eu já considerava íntima – com o escritor francês. Por trás das lentes, os olhos da professora saltaram, pois ela quase não acreditou que eu já pudesse ter lido “tão difícil autor”. Na saída da aula, alguns alunos cochichavam sobre “a deselegância daquela professora tão arrogante”. Sentiam-se humilhados, e com razão. Fiquei triste ao ver o modo como tentaram fingir indiferença, desdenhando de Proust, como se eles não fizessem parte também do céu psicológico urdido pelo criador de Em busca do tempo perdido.
A professora, que colecionava diplomas universitários, títulos de fazer a gente se entalar, naquela manhã, assassinou a sangue frio um dos autores mais belos da literatura mundial, um mestre que me fez mergulhar nas caudalosas ondas da memória e do tempo, que me deu aulas de crítica literária, me apresentou a grandes nomes da pintura e da música, mas que, sobretudo, me mostrou a beleza de um caminho urdido com longas e melodiosas frases, me ensinando a meticulosa composição para uma estética da palavra, arrebatando meu precoce coração com sua narrativa lírica e tão humana. Foi com dor que o vi estatelado no chão daquela sala de aula. Como podia um homem de grandiosa sensibilidade terminar assim morto diante de um grupo de jovens que poderiam, um dia, vir a amá-lo? Apaixonada, arrebatada, dramática, quis dar-lhe a mão e gritar: “Vem, Proust, eu te salvo!”
Não sei se aquela professora ainda anda por aí a cometer crimes, a matar autores da literatura. Espero que não. No entanto, gostaria de avisá-la que Proust não se pronuncia “Práusti” – que foi o modo como ela falou. Sei que agora fui deselegante ao fazer esta venenosa provocação. Mas se as palavras me vieram assim cheias de rancor é porque ainda não a perdoei por seu crime.
A professora, que colecionava diplomas universitários, títulos de fazer a gente se entalar, naquela manhã, assassinou a sangue frio um dos autores mais belos da literatura mundial, um mestre que me fez mergulhar nas caudalosas ondas da memória e do tempo, que me deu aulas de crítica literária, me apresentou a grandes nomes da pintura e da música, mas que, sobretudo, me mostrou a beleza de um caminho urdido com longas e melodiosas frases, me ensinando a meticulosa composição para uma estética da palavra, arrebatando meu precoce coração com sua narrativa lírica e tão humana. Foi com dor que o vi estatelado no chão daquela sala de aula. Como podia um homem de grandiosa sensibilidade terminar assim morto diante de um grupo de jovens que poderiam, um dia, vir a amá-lo? Apaixonada, arrebatada, dramática, quis dar-lhe a mão e gritar: “Vem, Proust, eu te salvo!”
Não sei se aquela professora ainda anda por aí a cometer crimes, a matar autores da literatura. Espero que não. No entanto, gostaria de avisá-la que Proust não se pronuncia “Práusti” – que foi o modo como ela falou. Sei que agora fui deselegante ao fazer esta venenosa provocação. Mas se as palavras me vieram assim cheias de rancor é porque ainda não a perdoei por seu crime.
Sem pilha, e funciona!
Essa tecnologia toda precisa de pilha, de eletricidade. O livro não tem nada disso, põe debaixo do braço e leva para onde quiser. Não tem que anotar em que parte parou, basta dobrar o cantinho e já sabe. É bonito no livro quando você risca o que lê. Acho bonito quando pego livros que li e vejo onde risquei e penso “já não sei mais por que marquei isso”. Que coisa boa! Naquele dia, aquilo teve uma função.Bartolomeu Campos de Queirós
Dedicatórias em livros
Algumas pessoas têm o costume de, ao adquirir um livro, assinar nele seu nome. Outras, ainda, de o datarem. Eu não faço nada disso. Não faço também oposição alguma. Tenho um amigo que possui tal hábito. Já me presenteou vários livros e neles sempre há seu nome e a data que os adquiriu.
Não sou daqueles que acha um crime rabiscar um livro. Pelo contrário: acho que um bom livro tem de estar rabiscado, tem de ser velho, cheirar a 1888, ter as páginas amarelecidas, a lombada um pouco gasta... Não é que eu não goste dos livros novos. Gosto. Tanto quanto. Mas os antigos me dão a sensação de terem sido escritos em épocas que eu gostaria de ter ao menos presenciado...
Mas eu dizia que não acho um crime rabiscar um livro, tracejar algumas frases, circular algumas palavras e fazer anotações. Acho que isso diz muito da pessoa que o manuseia. Por exemplo.
Possuo o livro “Cânticos”, da Cecília Meireles, 3ª edição da Editora Moderna feita em 1983. Nele há anotações (e são muitas) de alguém que provavelmente era jovem e principiava os estudos sobre poesia, pois os versos estão divididos silabicamente e com seus significados ao lado, próprio de quem o tomou apenas para passar nas provas escolares.
Da mesma autora tenho as “Poesias completas”, da Civilização Brasileira, de 1974, que reúnem “Poemas de viagens”, “Poemas italianos” e “O estudante empírico”. Ali o dono limitou-se a escrever se gostara muito, pouco ou nada do poema. Percebe-se, pela escrita abreviada, que devia ser uma pessoa irrequieta, talvez com uma rotina agitada, que lia aquilo para um trabalho de faculdade ou por consideração a alguém que lhe era caro e devia ter lhe dado o livro.
Mas o que mais me fascina são as dedicatórias na contracapa. Acho gostoso ir a um sebo e encontrá-las nas minhas aquisições, como cartas que o mar conduz. Elas contam histórias, sugerem sentimentos, esboçam imagens de lugares e tempos afastados.
No livro “Sonata do desencanto”, de Cleómenes Campos, Editora Saraiva, 1950, uma tal Nair de Campos oferece a um amigo, “com o máximo respeito e o mais sincero aprêço”, os versos que ali vão. Ela escreve de Mogi das Cruzes, em 28-11-952.
Já em “A flor, o pássaro e o vento”, de Maria Thereza Galvão, um livro de sonetos editado pela Livraria Martins Editôra em 1966, a coisa é um pouco mais íntima. Nele é a própria autora quem faz a dedicatória, demonstrando uma proximidade para com os agraciados que remonta a épocas mais tranquilas e frutuosas.
O que muito me cativa nessa dedicatória é o fato de ela ter sido feita em 13-08-1981, nove dias antes do meu nascimento. Quem poderia imaginar, a autora poderia imaginar que seu livro um dia estaria nas mãos de um que nasceu 15 anos após sua publicação? Poderia ela imaginar que a sua proximidade para com aqueles seria agora a minha proximidade para com ela?
Isso, esse encontrar vestígios de vida de outras pessoas nos livros, que não o próprio autor e sua obra, participar um pouco de certo momento de suas vidas, imaginar como viviam, se ainda vivem e como estão, o que sentiam na hora que escreviam, supor o antes e o depois, essa relação com o passado, com a história de outros, é para mim fascinante.
Em “Os melhores poemas de Fernando Pessoa”, Global Editora, 1994, há uma das dedicatórias mais familiares que já tive o prazer de encontrar nos livros da vida. Transcrevo-a na íntegra abaixo, e deixo que você, meu leitor, sinta-a por si próprio.
“IsabellaEis aqui um dos maiores poetas da língua portuguesa. Conhecê-lo é fundamental, amá-lo é inevitável! Sua poesia é para toda a vida, quem o conhece jamais tira seus livros da cabeceira. Você que quer fazer Comunicação conviverá com ele para sempre. Leia-o e sinta-o e concentre-se, com certeza você vai amá-lo e à língua portuguesa.Feliz Natale95 na faculdade!Boa sorte.Carol, Mimi e Gidinho”
É certo que os donos não tiveram consideração por aqueles que os presentearam, especialmente nossa Isabella, que parece não ter amado como queriam os seus agraciadores ao seo Pessoa, já que tais livros se encontram nas minhas mãos. Mas se não fosse isso eu não teria me relacionado com essas almas literárias, sentido um pouco de sua existência.
segunda-feira, abril 25
O velho
Da cidade, correndo à superfície do rio, chagavam os sons graves de um sino de bronze, oferecido ao mosteiro por um amador de carrilhões de igreja.
O cocheiro, que estava muito próximo de Nekliudov, e todos os carroceiros, foram tirando os bonés, cada um por sua vez, e persignaram-se. Um velhote de estatura baixa, andrajoso, em que Nekliudov não reparara, em princípio, por estar mais perto da borda que os outros, foi o único que não se persignou, mas, levantando a cabeça. Olhou para ele. Estava vestido com uma longa peliça, de calças de pano e de sapatos cambados e remendados. Trazia um saco pendurado nas costas e na cabeça um boné alto de pele muito surrado.
- Então tu, velho, não te benzes? – perguntou o cocheiro de Nekliudov, depois de ter posto novamente o boné. – És capaz de nem ser batizado?
- Benzer-me? Em nome de quem? – replicou o velho com um ar decidido e provocante, salientando cada uma das sílabas.
- De quem? De Deus, com certeza! – respondeu o cocheiro, ironicamente.
- Pois bem, mostra-mo então! Onde está o teu Deus?
- Onde? Toda a gente sabe: no céu!
- Já foste lá?
- Tenha lá ido ou não, toda gente sabe que é preciso rezar a Deus.
- Nunca ninguém viu Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o deu a conhecer – continuou o velho com a mesma vivacidade, franzindo o sobrolho.
- Já estou a ver que tu és um pagão, um descrente. Adoras o vazio – disse o cocheiro estalando o chicote na cintura e ajustando os arreios do cavalo.
Ouviu-se uma risada.
- E qual é a tua religião, avô? – perguntou um homem de certa idade que estava próximo da carroça, na extremidade da barcaça.
- Não tenho religião porque não creio em ninguém, a não ser em mim próprio -assim respondeu com rapidez e firmeza.
- Mas como é que se pode crer em si próprio? – perguntou Nekliudov, por sua vez. – Podemos nos enganar.
- Nunca! – replicou o velho, com um movimento de cabeça.
- Então, porque é que existem tantas religiões diversas?
- Elas são diversas porque os homens creem nos outros e não em si próprios. Também eu tive fé nos homens e errei na taiga. Perdi-me de tal forma que já não esperava sair de lá. E os velhos crentes, e os novos crentes, e os Subootniki, e os Klysty, e os Poptsy, e os Bezpotovtsy, e os Austriacki, e os Molokanes, e os Skoptsy, todos exaltam a sua religião como se fossem a única. E todos se dispersaram como uma matilha de cachorros cegos. Inúmeras são as crenças, mas o Espírito é apenas um. Ele está em mim, em ti, em nós. Portanto, que cada um creia no seu próprio espírito e então estaremos todos unidos! Que cada um volte a ser ele próprio e todos estarão com ele.
O velho falava muito alto e olhava sem cessar em seu redor como que para ter o maior número de ouvintes possível.
- Há muito que tem essa fé? – perguntou Nekliudov.
- Eu? Há muito. Já vão fazer vinte e três anos que eles me perseguem.
- Como! Perseguem-te?
- Sim, tal como perseguiram Cristo, perseguem-me a mim. Prendem-me e levam-me perante os tribunais e perante os popes – os escribas e os fariseus.
- E para onde é que vai agora? – perguntou Nekliudov.
- Para onde Deus me conduzir. Trabalho e, quando não há trabalho, mendigo – acrescentou o velho, passeando sobre os seus ouvintes um olhar triunfante. A barcaça aproximava-se da margem.
Acostou. Nekliudov puxou pelo porta-moedas e ofereceu dinheiro ao velho, que recusou.
- Não aceito dinheiro. Só aceito pão.
- Então, adeus e desculpe-me!
- Nada há a perdoar. Não me ofendeste. Aliás, não é possível ofenderem-me – disse o velho voltando a por o saco às costas.
Entretanto haviam feito sair a tróica e atrelaram-na.
- Porque se ralou a falar-lhe? – perguntou o cocheiro a Nekliudov, quando este, depois de ter dado uma gorjeta aos robustos barqueiros, subiu para o carro. – Um vagabundo! Um homem sem préstimo!
Leon Tolstoi, "Ressurreição"
O cocheiro, que estava muito próximo de Nekliudov, e todos os carroceiros, foram tirando os bonés, cada um por sua vez, e persignaram-se. Um velhote de estatura baixa, andrajoso, em que Nekliudov não reparara, em princípio, por estar mais perto da borda que os outros, foi o único que não se persignou, mas, levantando a cabeça. Olhou para ele. Estava vestido com uma longa peliça, de calças de pano e de sapatos cambados e remendados. Trazia um saco pendurado nas costas e na cabeça um boné alto de pele muito surrado.
- Então tu, velho, não te benzes? – perguntou o cocheiro de Nekliudov, depois de ter posto novamente o boné. – És capaz de nem ser batizado?
- Benzer-me? Em nome de quem? – replicou o velho com um ar decidido e provocante, salientando cada uma das sílabas.
- De quem? De Deus, com certeza! – respondeu o cocheiro, ironicamente.
- Pois bem, mostra-mo então! Onde está o teu Deus?
Havia na expressão do velho algo de tão grave e tão duro que o cocheiro, sentindo que estava em presença de uma natureza forte, ficou um pouco desconcertado. Todavia, dissimulou a sua perturbação e, esforçando-se por ter a última palavra, para não se sentir diminuído perante os outros, respondeu com vivacidade.
- Onde? Toda a gente sabe: no céu!
- Já foste lá?
- Tenha lá ido ou não, toda gente sabe que é preciso rezar a Deus.
- Nunca ninguém viu Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o deu a conhecer – continuou o velho com a mesma vivacidade, franzindo o sobrolho.
- Já estou a ver que tu és um pagão, um descrente. Adoras o vazio – disse o cocheiro estalando o chicote na cintura e ajustando os arreios do cavalo.
Ouviu-se uma risada.
- E qual é a tua religião, avô? – perguntou um homem de certa idade que estava próximo da carroça, na extremidade da barcaça.
- Não tenho religião porque não creio em ninguém, a não ser em mim próprio -assim respondeu com rapidez e firmeza.
- Mas como é que se pode crer em si próprio? – perguntou Nekliudov, por sua vez. – Podemos nos enganar.
- Nunca! – replicou o velho, com um movimento de cabeça.
- Então, porque é que existem tantas religiões diversas?
- Elas são diversas porque os homens creem nos outros e não em si próprios. Também eu tive fé nos homens e errei na taiga. Perdi-me de tal forma que já não esperava sair de lá. E os velhos crentes, e os novos crentes, e os Subootniki, e os Klysty, e os Poptsy, e os Bezpotovtsy, e os Austriacki, e os Molokanes, e os Skoptsy, todos exaltam a sua religião como se fossem a única. E todos se dispersaram como uma matilha de cachorros cegos. Inúmeras são as crenças, mas o Espírito é apenas um. Ele está em mim, em ti, em nós. Portanto, que cada um creia no seu próprio espírito e então estaremos todos unidos! Que cada um volte a ser ele próprio e todos estarão com ele.
O velho falava muito alto e olhava sem cessar em seu redor como que para ter o maior número de ouvintes possível.
- Há muito que tem essa fé? – perguntou Nekliudov.
- Eu? Há muito. Já vão fazer vinte e três anos que eles me perseguem.
- Como! Perseguem-te?
- Sim, tal como perseguiram Cristo, perseguem-me a mim. Prendem-me e levam-me perante os tribunais e perante os popes – os escribas e os fariseus.
Encerraram-me numa casa de doidos. Mas nada podem contra mim, porque eu sou livre. ‘Como é que te chamam?’, perguntam eles. Imaginam que eu voudizer-lhes um título qualquer. Abjurei tudo: nome, domicílio, pátria. Nada tenho. Tornei-me eu próprio. Como é que me chamo? Um homem! – ‘E que idade tens?’ – ‘Não contei.’ É o que lhes respondo. E, aliás, não se pode contar, visto que sempre existi e sempre existirei. – ‘E quem são o teu pai e a tua mãe?’, perguntam eles. ‘Não tenho pai nem mãe, a não ser Deus e a Terra. O primeiro é meu pai, a outra é minha mãe.’ – ‘E o czar, reconhece-o?’ -‘Porque não o hei de reconhece-lo? Ele é o seu czar e eu sou o meu czar.’ – ‘Oh! É impossível discutir contigo!’ – ‘Não te peço que discutas comigo’, respondo eu. E é assim que eles me atormentam.
- E para onde é que vai agora? – perguntou Nekliudov.
- Para onde Deus me conduzir. Trabalho e, quando não há trabalho, mendigo – acrescentou o velho, passeando sobre os seus ouvintes um olhar triunfante. A barcaça aproximava-se da margem.
Acostou. Nekliudov puxou pelo porta-moedas e ofereceu dinheiro ao velho, que recusou.
- Não aceito dinheiro. Só aceito pão.
- Então, adeus e desculpe-me!
- Nada há a perdoar. Não me ofendeste. Aliás, não é possível ofenderem-me – disse o velho voltando a por o saco às costas.
Entretanto haviam feito sair a tróica e atrelaram-na.
- Porque se ralou a falar-lhe? – perguntou o cocheiro a Nekliudov, quando este, depois de ter dado uma gorjeta aos robustos barqueiros, subiu para o carro. – Um vagabundo! Um homem sem préstimo!
Leon Tolstoi, "Ressurreição"
Goiaba
Naftali Bezem |
Quarenta segundos antes de Shkedi expirar, surgiu um anjo vestido totalmente de branco e lhe contou que ele fora premiado com um último desejo. Shkedi tentou descobrir o que “premiado” sugeria. Será que se tratava de um prêmio como em uma loteria, ou algo um pouquinho mais lisonjeiro: “premiado” por uma conquista, em reconhecimento por seus bons atos? O anjo deu de asas. “Não sei”, confessou com pura sinceridade angelical. “Disseram-me para vir e realizar, não disseram por quê.” “Pena”, disse Shkedi, “porque é absolutamente fascinante. Especialmente agora, quando estou para partir deste mundo, é muito importante para mim saber se eu o deixo simplesmente como qualquer sujeito de sorte ou com um tapinha nas costas.” “Quarenta segundos e você cai fora”, disse o anjo com indiferença. “Se quer passar este tempo tagarelando, por mim, tudo bem. Não tem problema. Leve apenas em consideração que a sua vitrine de oportunidades está se fechando.” Shkedi entendeu e fez logo seu pedido. Mas não antes de fazer ao anjo uma observação em relação ao seu jeito estranho de falar. Quer dizer, estranho para um anjo. O anjo se ofendeu. “O que quer dizer ‘para um anjo’? Alguma vez já ouviu um anjo falando para estar despejando isso em mim?” “Não”, confessou Shkedi. O anjo pareceu de repente muito menos angelical e agradável, mas aquilo não era nada comparado à sua aparência quando ouviu o desejo.
“Paz mundial?”, ele berrou irado. “Paz mundial? Você está zombando de mim?”
E então Shkedi morreu.
Shkedi morreu e o anjo ficou. Ficou com o desejo mais maçante e complicado que alguma vez foi solicitado a realizar. Na maioria dos casos, as pessoas pediam um carro novo para a esposa, um apartamento para o filho. Coisas razoáveis. Coisas específicas. Mas paz mundial é um trabalhão. Primeiro, o sujeito o perturba com perguntas, como se ele fosse do setor de informações da companhia telefônica, depois o ofende por falar esquisito, e ainda por cima lhe pede paz mundial. Se ele não tivesse batido as botas, o anjo grudaria nele como herpes e não o largaria até que substituísse o desejo. Mas a alma do fulano já tinha sido despachada para o sétimo céu, e como seria procurá-la por lá agora?
O anjo respirou fundo. “Paz mundial, isto é tudo”, balbuciou, “paz mundial, é tudo.”
E enquanto tudo isso acontecia, a alma de Shkedi já esquecera completamente que havia pertencido a alguém chamado Shkedi, e reencarnou, pura e imaculada, de segunda mão, mas como nova, dentro de uma fruta. Sim, uma fruta. Uma goiaba.
A nova alma não tinha pensamentos. Goiabas não têm pensamentos. Mas tinha sentimentos. Sentia um medo terrível. Tinha medo de cair da árvore. Não tinha palavras para descrever este medo. Mas se tivesse, certamente seria algo no estilo, “Mãezinha, não quero cair”. E enquanto estava pendurada na árvore, apavorada, a paz começou a reinar no mundo. As pessoas transformaram suas espadas em pás, e usinas atômicas foram rápida e sabiamente transformadas para propósitos pacíficos. Mas nada disto tranquilizou a goiaba. Porque a árvore era alta e o solo parecia distante e doloroso. Só não me deixe cair, a goiaba tremia sem palavras, só não caia.
Etgar Keret, "De repente, uma batida na porta"
domingo, abril 24
Distopia (trecho)
Para Mussa José Assis
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anêmica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigênio,
essa delgada água,
esse termômetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta do caos escorrendo lentamente nossas vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.
Como será o planeta do amanhã...!?
Um mar sem arquipélagos?
um oceano de migrantes?
uma praia de naufrágios?
Falo de uma temperatura cruel,
de paisagens derretidas,
de uma frota de icebergs navegando os sete mares.
Como será a terra do amanhã!?
um campo calcinado?
uma lavoura sinistra?
Que sabor terão os frutos na próxima estação?
que surpresas nos escondem os segredos da ciência?
o que colheremos da alquimia da ganância?
Falo de patentes criminosas,
de sementes suicidas,
dessa dinastia de flores virulentas polinizando a vida
e desse bizarro contrabando germinando sobre a terra.
Como será teu amanhã!?
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido pelos circuitos virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?
Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronômetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.
Como será nosso amanhã!?
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos mercenários do vício
enriquecidos pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.
Como será o amanhã!?
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?
Quem sabe..., uma alameda “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour.
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando a sensualidade e o acinte
na pública ribalta do hedonismo!
Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrônicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.
E pergunto, perplexo, pela pátria do amanhã...
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.
O que sobrará enfim desse perene banquete...!?
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada, o nosso lixo remexido.
E eis porque falo de uma alarmante geografia de lágrimas,
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?
Manoel de Andrade, "Cantares"
Dos livros e do vício impune da Leitura
A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica. Prazer, já vimos como pode sê-lo – e de que maneira absorvente! Quanto a instrução, não há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem. A falta de leitura pode ser a causa de certos impedimentos aparentemente inexplicáveis. Contava o proprietário de uma grande empresa americana, que dependia fundamentalmente do espírito inventivo dos seus engenheiros, para o êxito comercial da firma, que, a certa altura, começou a sentir-se desconfortável com o facto de nunca dar aos seus indispensáveis técnicos uma hipótese de chegarem ao topo da hierarquia da empresa. Mantinha-os a investigar, num nível mais baixo do organograma, embora com salários elevados, ficando os lugares de topo para gente do direito e da economia. Bem pagos, sim, promovidos, não. Permaneciam lá em baixo, a produzir os “gadgets” que a empresa vendia… Por fim, o proprietário, para aliviar a sua consciência, decidiu que era injusto não dar aos seus engenheiros, a quem a empresa tanto devia, a mesma oportunidade de promoção que dava aos juristas e aos economistas. E começou a promovê-los, empurrando-os suavemente pelo organograma acima. Mas acabou a verificar que, a partir de um certo nível da hierarquia, nem eles se sentiam confortáveis com as tarefas de pura gestão, nem os lugares pareciam ajustar-se-lhes. Intrigado, tentou arduamente, durante algum tempo, perceber a razão disto, uma vez que não queria que a injustiça se perpetuasse. O tempo foi passando, sem que ele chegasse a uma conclusão. Até que, um dia, para seu grande espanto, deu com a resposta: o que aos seus engenheiros faltava, para se sentirem mais confortáveis no topo da hierarquia, era um bom bocado de leitura e de cultura geral. A leitura abre-nos portas e ilumina realidades, idiossincrasias, conflitos, emoções, preconceitos, ambições, etc., que um chefe de empresa não pode ignorar. A leitura não fornece um apêndice decorativo ao grande empresário – é simplesmente uma necessidade. Um dos grandes engenheiros electrotécnicos do nosso país, que foi um grande Professor do Instituto Superior Técnico e um notável Ministro da Economia – Ferreira Dias – era também um homem de grande cultura, com a qual muito enriqueceu o seu magistério, do qual, nós, alunos, aproveitámos, gulosamente: durante as viagens de fim de curso, com ele, como cicerone, ou sempre que uma oportunidade surgia. O grande matemático, Mira Fernandes, era um homem cultíssimo, como o era Bento de Jesus Caraça, fundador da legendária Biblioteca Cosmos, e também o Professor de Física do Instituto Superior Técnico, António da Silveira (que escrevia admiravelmente). Os grandes profissionais, os verdadeiramente de topo, não rejeitam a leitura, até ao fim das suas vidas. Aprender até morrer – é o lema. O mítico empresário Henry Ford disse-o de forma categórica: “Quem quer que cesse de aprender é velho, quer tenha vinte, quer tenha cinquenta anos. Quem quer que continue a aprender mantém-se eternamente jovem.” Só os profissionais e empresários medíocres se confinam no universo estreito e fechado da sua “especialidade”. Egas Moniz foi um grande médico, um grande Professor, um notável investigador e um espírito aberto à cultura e à literatura.
As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.
A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos:
“Tenho algumas vezes sonhado que, no dia em que o Dia do Juízo amanhecer e os grandes conquistadores e juristas vierem receber as suas recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes gravados indelevelmente no mármore imperecível – o Altíssimo se virará para S. Pedro e dir-lhe-á, não sem uma certa inveja, quando nos vir a nós aproximar-nos, com os nossos livros debaixo dos braços: ‘Olha, estes não precisam de recompensa. Não há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!’Eugénio Lisboa, "Vamos Ler, um cânone para o leitor relutante"
Por outro lado, a grande literatura é também boa e eficaz terapêutica para os nossos momentos de crise. No meio dos desarrumos e tumultos (e até injustiças) que os tempos revolucionários inevitavelmente trazem às nossas vidas, a leitura de um grande livro que nos relate tempos semelhantes, outrora vividos por outros, como, por exemplo, Les Dieux Ont Soif (Os Deuses Têm Sede), de Anatole France, conseguirá acalmar a nossa ansiedade, pondo-a em razoável perspectiva: porque nos mostra, com talento e engenho, como outros já passaram pelo mesmo, tendo depois a tempestade acabado por amainar. Mesmo à proximidade da morte, a leitura de um livro empolgante pode trazer inesperado prazer, distracção e consolo. Lembro-me do meu amigo, Dr. Fernando Ferreira, notável psiquiatra e homem cultíssimo, no seu leito de morte, em Lourenço Marques. Fui vê-lo, um dia, já perto do fim. Na sua mesa de cabeceira, como lenitivo prometido, um medicamento infalível: um romance de Camilo. À saída, perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse algum livro. Respondeu-me sem hesitar: “Traga-me o último livro de Domingos Monteiro”. Óptima escolha, pensei eu: um dos nossos maiores contistas. Levei-lhe, um ou dos dias depois, Letícia e o Lobo Júpiter, que agradeceu efusivamente. Espero que o tenha lido antes do seu falecimento, que teve lugar não muito depois.
As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.
A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos:
“Tenho algumas vezes sonhado que, no dia em que o Dia do Juízo amanhecer e os grandes conquistadores e juristas vierem receber as suas recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes gravados indelevelmente no mármore imperecível – o Altíssimo se virará para S. Pedro e dir-lhe-á, não sem uma certa inveja, quando nos vir a nós aproximar-nos, com os nossos livros debaixo dos braços: ‘Olha, estes não precisam de recompensa. Não há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!’
sábado, abril 23
Um livro e sua lição
Poucos livros são como este livro. Aparentemente, igual a muitos. Mas se o abrires em qualquer página, encontrarás de cada vez um texto diferente.
Ouvi que na Ásia há um livro com a mesma propriedade, e que nos Estados Unidos existiu outro, comprado a um dervixe, mas que, pelo manuseio constante, não apresenta a singularidade: ficou um livro como os demais, unívoco.
O exemplar que possuo, não deixo que ninguém o consulte. Zelo por sua integridade, e só de longe em longe me animo a folheá-lo. E é sempre um assombro.
Este livro extraordinário me explicou o sentido do mundo, que varia sempre e não se subordina a qualquer filosofia. Explicação que não explica, pois sendo infinitas as variações, qualquer delas só dura o tempo de leitura de uma página, ou meia.
Não posso continuar guardando o volume, e não sei o que fazer dele. Tenho medo de abri-lo; medo de rasgá-lo; medo de que o furtem; medo de ler nele uma sentença aniquiladora, a última sentença, depois da qual o mundo deixaria de ser vário e, portanto, de existir.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"
Ouvi que na Ásia há um livro com a mesma propriedade, e que nos Estados Unidos existiu outro, comprado a um dervixe, mas que, pelo manuseio constante, não apresenta a singularidade: ficou um livro como os demais, unívoco.
O exemplar que possuo, não deixo que ninguém o consulte. Zelo por sua integridade, e só de longe em longe me animo a folheá-lo. E é sempre um assombro.
Não o comprei. Achei-o no porão de uma casa onde só havia trastes abandonados e teias de aranha. Ao descobrir sua inacreditável raridade, fiquei trêmulo e guardei o segredo até dos mais íntimos.
Este livro extraordinário me explicou o sentido do mundo, que varia sempre e não se subordina a qualquer filosofia. Explicação que não explica, pois sendo infinitas as variações, qualquer delas só dura o tempo de leitura de uma página, ou meia.
Não posso continuar guardando o volume, e não sei o que fazer dele. Tenho medo de abri-lo; medo de rasgá-lo; medo de que o furtem; medo de ler nele uma sentença aniquiladora, a última sentença, depois da qual o mundo deixaria de ser vário e, portanto, de existir.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"
De um diário íntimo do século trinta
Tenho 9 anos. Meu nome é Gavrilo. Meu professor só hoje me permitiu uma ida ao Jardim Botânico, por causa da minha redação sobre a fórmula de Einstein. Elogiou em aula o meu trabalho porque, disse ele, em vez de dar-lhe uma interpretação, como fazem todas as crianças, eu me limitei a dizer que aquela simples fórmula era uma coisa tão absurda e maravilhosa e inacreditável como as lendas pré-históricas, por exemplo a Lâmpada de Aladino ou a Vida de Napoleão e seu Cavalo Branco. Por isso começo hoje o meu diário, que eu devia ter começado aos 7 anos. Mas nessa idade a gente só escreve coisas assim: “A Adalgiza caminha como um saca-rolha” ou “Pusemos na Inspetora Geral do Ensino o apelido de Dona Programática”. Pois lá me fui com outros meninos e meninas que também tinham merecido menção pública ao Jardim Botânico, que me pareceu pequeno porque constava apenas de uma cúpula de vidro. Havia uma fila enorme de turistas e visitantes domingueiros. Lá dentro não era apenas ar condicionado, era um vento leve, uma “brisa”, explicou-nos o professor. Uma brisa que agitava os cabelos da gente e as folhas da árvore. Sim, porque lá dentro só havia uma árvore, a única árvore do mundo e que se chamava simplesmente “a árvore”, pois não havia razão para a diferenciar de outras. Suas folhas agitavam-se e tinham um cheiro verde. Não sei se me explico bem. Não importa: este diário é secreto e será queimado publicamente com outros, de autoria dos meninos da minha idade, quando atingirmos os 13 anos. Dona Programática nos explicou a necessidade destes diários porque, “para higiene da alma e preservação do indivíduo, todos têm direito a uma vida secreta, ao contrário do que acontecia nos tempos da Inquisição, da Censura, dos sucessores do Dr. Sigmund Freud e dos entrevistadores jornalísticos”.
Isto diz a Dona Programática. Mas o nosso professor de Redação, que não é tão cheio de coisas, diz que estes nossos diários secretos servem para a gente dizer besteiras só por escrito em vez de as dizer em voz alta.
Na próxima vez tratarei de fazer uma boa redação sobre a Árvore para ver se ganho o prêmio de uma visita ao Zoo — onde está o Cavalo. Andei indagando dos grandes sobre este nosso cavalo e me disseram que não, que ele não era branco. Uma pena…
Mario Quintana, "A vaca e o hipogrifo"
Isto diz a Dona Programática. Mas o nosso professor de Redação, que não é tão cheio de coisas, diz que estes nossos diários secretos servem para a gente dizer besteiras só por escrito em vez de as dizer em voz alta.
Na próxima vez tratarei de fazer uma boa redação sobre a Árvore para ver se ganho o prêmio de uma visita ao Zoo — onde está o Cavalo. Andei indagando dos grandes sobre este nosso cavalo e me disseram que não, que ele não era branco. Uma pena…
Mario Quintana, "A vaca e o hipogrifo"
Adoradores da bola
O brinquedo essencial do homem é a bola. Quem ganha uma bola descobre dois mundos, o de dentro e o de fora. Um Psicólogo do futebol imagina a seguinte cena: meninos jogam na rua; a bola sobra para o cavalheiro que passa. Que fará o austero transeunte? Ficará indiferente? Devolverá a bola com as mãos? Já vimos todos nós o que ele irá fazer: o homem, sem perder a gravidade rebate a bola com o pé, aparentemente para prestar um serviço à garotada, mas na Verdade porque não resiste ao elástico e impulsivo prazer de dar um chute. É sempre um grande prazer, uma das coisas agradáveis da vida, dar um chute na bola, sobretudo quando conseguimos colocá-la na meta almejada. O Poeta Rainer Maria Rilke intuiu bem os símbolos contidos na bola e no jogo da bola: a lei da gravidade e a liberdade do voo são valores atuantes da realidade humana. Atirar e agarrar são formas fundamentais do nosso comportamento diante da existência. Antes de Rilke, o educador Fröbel havia escrito: "A esfera é para mim um símbolo da plenitude realizada; é o símbolo de meus princípios fundamentais de educação e de vida, que são do tipo esférico.
A lei esférica é a lei fundamental de toda formação humana verdadeira e satisfatória.
Um companheiro nosso, zagueiro de recursos, resolveu reservar parte dum loteamento seu na Gávea, onde começou a construir um campo legal. Foi um deus-nos-acuda. Os amigos dele, distintos homens de negócio, não entendiam nada. O próprio engenheiro das obras fazer um campo de futebol? Os que não entenderam o nosso campo tinham perdido irremediavelmente (danem-se) a infância. A infância é apenas isto: a sensação de que viver é de graça.
Foi duro: quando começamos, os poucos homens sérios que jogavam peladas viviam mais ou menos clandestinos nos altos de Correias e da Tijuca.
A verdade integral é a bola. O futebol paixão. Esse amor que faz um homem de quarenta e tantos anos sofrear o sono da fadiga para rememorar em câmara lenta o gol de cobertura que fez pela manhã.
Futebol divide os homens como o álcool: há os que jogam moderadamente na adolescência, sem muito gosto, só para passar o tempo e desentorpecer a musculatura; aos que jogaram com algum fervor e esqueceram de todo o passado; existem afinal os alcoólatras do homens que adoram a Bola como os fenícios adoravam Baal.
Esses últimos são capazes de horrores: trocam a repousante feijoada na casa do melhor amigo por um arranca-toco em Curicica. Trocam tudo, o casamento da sobrinha, a festa de mulherio farto, o enterro da avó, e até o encontro que o finado Raimundo chamava Conheço um que voou de Paris para Roma a fim de pegar o avião que o depositasse no Rio a tempo de apanhar nosso torneio dominical. Outro, convidado para apadrinhar um casamento em tarde de sábado, foi rude porém sincero, colocando a noivinha nesta sinuca: um presente de duzentos no sábado ou um cheque de mil se o casamento fosse transferido para outro dia da semana. Um terceiro dava um vestido caro à mulher (a própria), contanto que ela o deixasse agarrar no gol no fim de semana, em vez de subir para as elegâncias de Petrópolis.
São assim os veteranos, irremovíveis.
Às vezes, línguas más dizem que estamos fazendo o vestibular para o Asilo São Luís. Pouco nos importa. Estejam todos certos de que levaremos uma bola para o pátio do asilo.
A lei esférica é a lei fundamental de toda formação humana verdadeira e satisfatória.
As nossas peladas adultas começaram há mais de vinte anos no quintal dum apartamento térreo em Ipanema. Um flamboaiã jogava de beque central dum lado, uma palmeirinha do outro. O primeiro quase me inutilizou para a prática do velho e violento esporte bretão. Passamos depois a jogar no parque dum laboratório farmacêutico da Rua Marquês de São Vicente, estraçalhando as flores, sim, estraçalhando as flores do nosso jardim da infância, para silenciosa mas indiscutível indignação do jardineiro português.
Um companheiro nosso, zagueiro de recursos, resolveu reservar parte dum loteamento seu na Gávea, onde começou a construir um campo legal. Foi um deus-nos-acuda. Os amigos dele, distintos homens de negócio, não entendiam nada. O próprio engenheiro das obras fazer um campo de futebol? Os que não entenderam o nosso campo tinham perdido irremediavelmente (danem-se) a infância. A infância é apenas isto: a sensação de que viver é de graça.
Foi duro: quando começamos, os poucos homens sérios que jogavam peladas viviam mais ou menos clandestinos nos altos de Correias e da Tijuca.
Sofremos oposição de todos os setores: o familiar, o profissional e o social. Usaram contra nós todos os instrumentos, contra nós a intimidação médica (“Cuidado com as coronárias!”), a declarada suspeita sobre a nossa integridade mental, o sarcasmo salgado e grosso, as explicações mais ou menos freudianas e as mais ou menos adlerianas. Eram conta nós sobretudo os que haviam amado a bola e não tinham mais a coragem de voltar à delícia da grama. Nós mesmos, por abominável respeito humano, passamos a inventar as desculpas que fossem tranquilizando os outros. Dizia um: a pelada é um pretexto para a cervejinha estupidamente gelada. É bom um pouco de exercício, dizia outro. O organismo foi feito para fazer força. Os cardiologistas sabem que o coração anda sobre as pernas. Também eu, com pusilanimidade, escrevi por aí que estávamos correndo atrás dum restinho de infinda - o que é apenas parte da verdade.
A verdade integral é a bola. O futebol paixão. Esse amor que faz um homem de quarenta e tantos anos sofrear o sono da fadiga para rememorar em câmara lenta o gol de cobertura que fez pela manhã.
Futebol divide os homens como o álcool: há os que jogam moderadamente na adolescência, sem muito gosto, só para passar o tempo e desentorpecer a musculatura; aos que jogaram com algum fervor e esqueceram de todo o passado; existem afinal os alcoólatras do homens que adoram a Bola como os fenícios adoravam Baal.
Esses últimos são capazes de horrores: trocam a repousante feijoada na casa do melhor amigo por um arranca-toco em Curicica. Trocam tudo, o casamento da sobrinha, a festa de mulherio farto, o enterro da avó, e até o encontro que o finado Raimundo chamava Conheço um que voou de Paris para Roma a fim de pegar o avião que o depositasse no Rio a tempo de apanhar nosso torneio dominical. Outro, convidado para apadrinhar um casamento em tarde de sábado, foi rude porém sincero, colocando a noivinha nesta sinuca: um presente de duzentos no sábado ou um cheque de mil se o casamento fosse transferido para outro dia da semana. Um terceiro dava um vestido caro à mulher (a própria), contanto que ela o deixasse agarrar no gol no fim de semana, em vez de subir para as elegâncias de Petrópolis.
São assim os veteranos, irremovíveis.
Às vezes, línguas más dizem que estamos fazendo o vestibular para o Asilo São Luís. Pouco nos importa. Estejam todos certos de que levaremos uma bola para o pátio do asilo.
Paulo Mendes Campos, "O gol é necessário"
sexta-feira, abril 22
Doçura da terra
Não sei se muitos fizeram essa descoberta – sei que eu fiz. Também sei que descobrir a terra é lugar-comum que há muito se separou do que exprime. Mas todo homem deveria em algum momento redescobrir a sensação que está sob descobrir a terra.
E à terra retornaremos. Ah, por que não nos deixaram descobrir sozinhos que à terra retornaremos: fomos avisados antes de descobrir. Com grande esforço de recriação descobri que: à terra retornaremos. Não era triste, era excitante. Só em pensar, já me sentia rodeada desse silêncio da terra. Desse silêncio que a gente prevê e que procura antes do tempo concretizar.
De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E por que não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra?
E pelo fato de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede.
Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão: terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
A mim aconteceu na Itália, durante uma viagem de trem. Não é necessário que seja a Itália. Poderia ser em Jacarepaguá. Mas era a Itália. O trem avançava e, depois de uma noite maldormida em companhia de uma sueca que só falava sueco, depois de uma xícara de café ordinário com cheiro de estação ferroviária – eis a terra através das vidraças. A doçura da terra italiana. Era começo de primavera, mês de março. Também não precisaria ser primavera. Precisava ser apenas – terra. E quanto a esta, todos a têm sob os pés. Era tão estranho sentir-se viver sobre uma coisa viva. Os franceses, quando estão nervosos, dizem que estão sur le qui-vive. Nós estamos perpetuamente sobre o que viver.
E à terra retornaremos. Ah, por que não nos deixaram descobrir sozinhos que à terra retornaremos: fomos avisados antes de descobrir. Com grande esforço de recriação descobri que: à terra retornaremos. Não era triste, era excitante. Só em pensar, já me sentia rodeada desse silêncio da terra. Desse silêncio que a gente prevê e que procura antes do tempo concretizar.
De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E por que não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra?
E pelo fato de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede.
Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão: terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Que diabo se passa com o governo,
Embora a palavra crise não seja certamente a mais apropriada para caracterizar os singularíssimos sucessos que temos vindo a narrar, porquanto seria absurdo, incongruente e atentatório da lógica mais ordinária falar-se de crise numa situação existencial justamente privilegiada pela ausência da morte, compreende-se que alguns cidadãos, zelosos do seu direito a uma informação veraz, andem a perguntar-se a si mesmos, e uns aos outros, que diabo se passa com o governo, que até agora não deu o menor sinal de vida. É certo que o ministro da saúde, interpelado à passagem no breve intervalo entre duas reuniões, havia explicado aos jornalistas que, tendo em consideração a falta de elementos suficientes de juízo, qualquer declaração oficial seria forçosamente prematura, Estamos a coligir as informações que nos chegam de todo o país, acrescentou, e realmente em nenhuma delas há menção de falecimentos, mas é fácil imaginar que, colhidos de surpresa como toda a gente, ainda não estejamos preparados para enunciar uma primeira ideia sobre as origens do fenômeno e sobre as suas implicações, tanto as imediatas como as futuras. Poderia ter-se deixado ficar por aqui, o que, levando em conta as dificuldades da situação, já seria motivo para agradecer, mas o conhecido impulso de recomendar tranquilidade às pessoas a propósito de tudo e de nada, de as manter sossegadas no redil seja como for, esse tropismo que nos políticos, em particular se são governo, se tornou numa segunda natureza, para não dizer automatismo, movimento mecânico, levou-o a rematar a conversa da pior maneira, Como responsável pela pasta da saúde, asseguro a todos quantos me escutam que não existe qualquer motivo para alarme, Se bem entendi o que acabo de escutar, observou um jornalista em tom que não queria parecer demasiado irônico, na opinião do senhor ministro não é alarmante o fato de ninguém estar a morrer, Exato, embora por outras palavras, foi isso mesmo o que eu disse, Senhor ministro, permita-me que lhe recorde que ainda ontem havia pessoas que morriam e a ninguém lhe passaria pela cabeça que isso fosse alarmante, É natural, o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo, Isto é, quando saem da rotina, Poder-se-á dizer assim, Mas, agora que não se encontra quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos vem pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos, é bastante paradoxal, Foi a força do hábito, reconheço que o termo alarme não deveria ter sido chamado a este caso, Que outra palavra usaria então o senhor ministro, faço a pergunta porque, como jornalista consciente das minhas obrigações que me prezo de ser, me preocupa empregar o termo exato sempre que possível. Ligeiramente enfadado com a insistência, o ministro respondeu secamente, Não uma, mas quatro, Quais, senhor ministro, Não alimentemos falsas esperanças. Teria sido, sem dúvida, uma boa e honesta manchete para o jornal do dia seguinte, mas o diretor, após consultar com o seu redator-chefe, considerou desaconselhável, também do ponto de vista empresarial, lançar esse balde de água gelada sobre o entusiasmo popular, Ponha-lhe o mesmo de sempre, Ano Novo, Vida Nova, disse.
José Saramago, "As intermitências da morte"
José Saramago, "As intermitências da morte"
quinta-feira, abril 21
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