terça-feira, abril 12

Leitora da noite

Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, dona Inácia concluiu:

“Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém.”

Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:

— E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...

Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:

— Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.

Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia:
— Você não vem tomar o seu café com leite, Conceição?

A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada, abstraída.

A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto.

— A bênção, Mãe Nácia! — E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor.

Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama — a velha cama de casal da fazenda — e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:

— Eh! A lua limpa, sem lagoa! Chove não!...

Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol.

Aqueles livros — uns cem, no máximo — eram velhos companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite.

Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.

Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume.

Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos de heroísmos, rebeliões e guerrilhas.

Conceição o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas amorosas, duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os outros — um volume de versos, um romance francês de Coulevain.

E ao repô-los na mesa, lastimava-se:

— Está muito pobre essa estante! Já sei quase tudo decorado!

Levantou-se, foi novamente ao armário. E voltou com um grosso volume encadernado que tinha na lombada, em letras de ouro, o nome de seu finado avô, livre-pensador, maçom e herói do Paraguai.

Era um tratado em francês, sobre religiões. Bocejando, começou a folheá-lo. Mas, pouco a pouco, qualquer coisa a interessou. E, deitada, à luz vermelha do farol, que ia enegrecendo o alto da manga com a fumaça preta, na calma da noite sertaneja, enquanto no quarto vizinho a avó, insone como sempre, mexia as contas do rosário, Conceição ia se embebendo nas descrições de ritos e na descritiva mística, e soletrava os ásperos nomes com que se invocava Deus, pelas terras do mundo.

Até que dona Inácia, ouvindo o cuco do relógio cantar doze horas, resmungou de lá:

— Apaga a luz, menina! Já é meia-noite!
Rachel de Queiroz, "O Quinze"

Nenhum comentário:

Postar um comentário