quinta-feira, abril 14

O cadáver de todas as coisas está na língua

Adormeceu no areal e, em seus medos e ignorâncias, as palavras brancas surgiram como se guerreassem com as puras abaeté. Era uma guerra vocabular em que sua mesma voz entoava de um modo e de outro e alguma coisa parecia obrigar a que escolhesse um dos lados, escutasse o som para decidir de beleza, de força, da capacidade maior ou menor de coagular um grande sentido, oferecer à mata uma fortuna, um sustento. Honra surpreendia-se agora com o susto de mais ocupar sua existência com a ferida branca. Se seu corpo já era ocupação branca, ocupação inimiga, capturar na toca do espírito o vocábulo sujo do inimigo poderia ser condenar-se por completo. Sucumbir inteiro, restar mais nada. E ele sabia das advertências insistentes dos guerreiros tardios que o educavam para uma vingança fundamental. Mas era mais do que o medo que movia Honra naqueles pesadelos. Era a fúria. E ele seguia mudando em seus sonhos as palavras brancas e inventando sangue, sangue que pudessem verter à sua pronúncia porque queria deter Pé de Urutago, o inexplicado que tivera a emoção de lhe prometer a morte. Estava emocionado, pensava o feio uma e outra vez. Deveria ser junto a Nada Bom e Nada Azul. Deveria ser chefiado para exclusão dos aptos à lucidez. O guerreiro branco, em seu tormento não desperto, deambulando de pesadelo em pesadelo, buscava nas palavras inimigas alguma mais feroz que caçasse impiedosamente e, sem falhar, garantisse que a dignidade abaeté ficasse intacta, protegida como uma evidência pela qual tinham de dar tudo. Subitamente, percorrendo o discurso branco que assomava à sua cabeça, Honra teve a impressão de estar dentro de uma identidade distinta que, talvez por esperança, poderia conferir-lhe uma robustez que não tinha ainda no discurso abaeté. Honra sentiu uma vertigem estranha. Uma tentação. Voltou a buscar entendimento para isso que sentia. Julgou adentrar o discurso branco como se adentrasse uma nova identidade à qual pudesse deitar mão para ser muito mais forte. Se o discurso branco pudesse ferir com maior violência, talvez Honra devesse tomá-lo naquele instante e entoar na direcção de Pé de Urutago a palavra de caça. O feio despertou. Era torto. O tremendo animal líquido resfolegava e o guerreiro branco sabia que se tentara pela malignidade de capturar em sua boca a onça vocabular do inimigo. Sentiu-se em perigo. Sentiu que única forma de maturar dali seria cantar por um tempo. Cantar as límpidas sabedorias abaeté que, por eternidades, salvavam os espíritos puros que pertenciam à Verdadeiríssima Divindade. Cantou e esperou que chegasse o sol para menos temer e mais acreditar.

O cadáver de todas as coisas está na língua. Naquilo que se pronuncia sobra tudo quanto foi, e a existência não se livra do cúmulo do que já passou. Para que cada palavra seja criadora, é também inevitável que saiba que sepulta dentro de si mesma. Quando entoas, nem que à deriva sem muito domínio ou consciência, o tempo todo e o espaço inteiro podem comparecer e qualquer palavra é infinitamente de maior tamanho do que o teu. Em cada modo de fala há uma identidade. Em cada língua um mesmo guerreiro encontra nova identidade. Usar outra língua implica atenção para haver modo de regresso. Sob pena de ser impossível voltar. Sob pena de ser impossível a paz no instante de voltar. Nossa língua é nosso comportamento. Ela dirá sobre o que fazes, dirá sobre o que és e sobre a inteligência de seguir uma conduta gentil. Nossa língua é gentil. Gentileza é tua obrigação.

Assim lhe explicaram os guerreiros tardios e o descansaram. A entoação inimiga procurava dominar sua boca, avassalar sua toca do espírito. Era de esperar que isso acontecesse. E Honra, calando sobre ter visto o guerreiro de vocação alada, queria acusar mas algo advertia a não o fazer. Era melhor deixar que o voltasse a encontrar, no terreiro, nas tarefas comuns, na esperança de que houvesse um arrependimento, uma súplica para que suas sagradas dignidades se pudessem tolerar novamente.

Descido à aldeia litoral, Honra buscou Pai Todo e o cumprimentou submisso, mas o santo dirigia-se ao coto da figueira e logo o subiu. A comunidade noticiou entre si que haveria chefia, alguma intuição que chegaria agora ao conhecimento de todos. E quando se silenciaram e prepararam para escutar, o guerreiro mais lúcido entoou:

vai abeirar a aldeia um curumim negro. Um negro. Conheci que será um pouco decorpo nocturno assustado e com fome. Conheci que seu desespero pede aos abaeté piedade. A voz coral chefia piedade. Chefia perante todos.

Os ancestrais explicaram que seria um pouco de corpo nocturno. A comunidade repetiu.

O feio observou em seu redor, estranho e desconfiado. Escutava o conhecimento de Pai Todo e desconfiava de o escutar. Imediato teve a impressão de haver uma companhia tangendo sua pele. Era ninguém. Mas o guerreiro ocupado quase juraria haver sido tocado. Ele moveu-se de um lado para o outro. O santo declarava e o guerreiro branco fugia de sentir o encosto de algum corpo impossível de se ver.

Incomodado, Honra chegou a esfregar sua pele. Talvez fosse algum insecto pousando, algum pequeno bicho procurando subir por sua perna. Esfregava repentino, num certo arrepio, e aquietava. Depois, voltava a sentir que era tocado e mais olhava em redor e não havia ninguém. Era, talvez, de sua cabeça despreparada.

O negro era um animal manso, desiluminado. Existia assimétrico nas preguiças e abusos do branco. Fazia pelo branco e morria sumário, tantas vezes sem razão e muito raro sonho. O negro era um animal sem guerra e defendia nada. A comunidade abaeté desperdiçava os negros. Passavam rarissimamente nas ilhas do órgão vital, mal orientados para encontrar um mocambo que juravam haver muito depois do quarto mar. Para os abaeté, depois do quarto mar era fim do mundo, queda das pedras, vegetação imatura em acordos ainda primitivos. O que habitasse para lá do quarto mar teria vocação de breve ou nenhuma vida. Sopraria apenas na poeira do vento.

Estava na memória dos antigos uma fera maior do que as árvores, um jacaré do tamanho de cem jacarés, e essa besta ia nas ilhas seguintes, incapaz de sair por ser tão gorda e afogar se tentasse atonar pelo tremendo animal líquido. Os negros que passavam adiante do quarto mar iam na direcção daquela fome. Eram refeição daquele horror. Os abaeté lembravam para nunca mais se atreverem a navegar naquelas águas, naquele fim.

O primeiro negro que aparecera nas ilhas os guerreiros mataram. Movera no escuro, parecia a ausência num pé, tombou em seu gemido animal. Foi levado para o coto da figueira e descansado perante a perplexidade de todos. Era um apagão sem mais mover. Alguns entoaram que fosse talvez já morto. Um animal que se movia na morte, como um encantado que busca um corpo de qualquer jeito. Outros mediram semelhanças com onça e podia ser que houvesse nascido de feminina dada em dupla para uma fera. Seria fruto de uma esperança de paz. Pobre negro. Nesse muito antigamente, perante esse primeiro escuro que fora abatido na noite igual a um tapir para ser comido, as aldeias suplicaram que fosse recebido pela encantaria para junto dos bichos amigados. E o espírito do negro, confuso, reviveu numa arara azul que sobrevoou a tatajuba central do terreiro e ficou observando. Os abaeté acreditam que foi essa primeira arara enternecida que levou maior consciência às araras que rondavam o terreiro, até que se fizesse a Arara Mais Consciente, animal observador em que Pai Todo lia com bastante precisão as intuições abençoadas que abundavam dos ancestrais.

Valter Hugo Mãe, "As doenças do Brasil"

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