A lei esférica é a lei fundamental de toda formação humana verdadeira e satisfatória.
As nossas peladas adultas começaram há mais de vinte anos no quintal dum apartamento térreo em Ipanema. Um flamboaiã jogava de beque central dum lado, uma palmeirinha do outro. O primeiro quase me inutilizou para a prática do velho e violento esporte bretão. Passamos depois a jogar no parque dum laboratório farmacêutico da Rua Marquês de São Vicente, estraçalhando as flores, sim, estraçalhando as flores do nosso jardim da infância, para silenciosa mas indiscutível indignação do jardineiro português.
Um companheiro nosso, zagueiro de recursos, resolveu reservar parte dum loteamento seu na Gávea, onde começou a construir um campo legal. Foi um deus-nos-acuda. Os amigos dele, distintos homens de negócio, não entendiam nada. O próprio engenheiro das obras fazer um campo de futebol? Os que não entenderam o nosso campo tinham perdido irremediavelmente (danem-se) a infância. A infância é apenas isto: a sensação de que viver é de graça.
Foi duro: quando começamos, os poucos homens sérios que jogavam peladas viviam mais ou menos clandestinos nos altos de Correias e da Tijuca.
Sofremos oposição de todos os setores: o familiar, o profissional e o social. Usaram contra nós todos os instrumentos, contra nós a intimidação médica (“Cuidado com as coronárias!”), a declarada suspeita sobre a nossa integridade mental, o sarcasmo salgado e grosso, as explicações mais ou menos freudianas e as mais ou menos adlerianas. Eram conta nós sobretudo os que haviam amado a bola e não tinham mais a coragem de voltar à delícia da grama. Nós mesmos, por abominável respeito humano, passamos a inventar as desculpas que fossem tranquilizando os outros. Dizia um: a pelada é um pretexto para a cervejinha estupidamente gelada. É bom um pouco de exercício, dizia outro. O organismo foi feito para fazer força. Os cardiologistas sabem que o coração anda sobre as pernas. Também eu, com pusilanimidade, escrevi por aí que estávamos correndo atrás dum restinho de infinda - o que é apenas parte da verdade.
A verdade integral é a bola. O futebol paixão. Esse amor que faz um homem de quarenta e tantos anos sofrear o sono da fadiga para rememorar em câmara lenta o gol de cobertura que fez pela manhã.
Futebol divide os homens como o álcool: há os que jogam moderadamente na adolescência, sem muito gosto, só para passar o tempo e desentorpecer a musculatura; aos que jogaram com algum fervor e esqueceram de todo o passado; existem afinal os alcoólatras do homens que adoram a Bola como os fenícios adoravam Baal.
Esses últimos são capazes de horrores: trocam a repousante feijoada na casa do melhor amigo por um arranca-toco em Curicica. Trocam tudo, o casamento da sobrinha, a festa de mulherio farto, o enterro da avó, e até o encontro que o finado Raimundo chamava Conheço um que voou de Paris para Roma a fim de pegar o avião que o depositasse no Rio a tempo de apanhar nosso torneio dominical. Outro, convidado para apadrinhar um casamento em tarde de sábado, foi rude porém sincero, colocando a noivinha nesta sinuca: um presente de duzentos no sábado ou um cheque de mil se o casamento fosse transferido para outro dia da semana. Um terceiro dava um vestido caro à mulher (a própria), contanto que ela o deixasse agarrar no gol no fim de semana, em vez de subir para as elegâncias de Petrópolis.
São assim os veteranos, irremovíveis.
Às vezes, línguas más dizem que estamos fazendo o vestibular para o Asilo São Luís. Pouco nos importa. Estejam todos certos de que levaremos uma bola para o pátio do asilo.
Paulo Mendes Campos, "O gol é necessário"
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