sexta-feira, abril 29

Noitada anarquista

O velho bairro me acolheu. A pequena igreja estava na penumbra, apagada e irreal. De repente, veio-me à memória o acontecimento daquela noite, a misteriosa ogiva com sua enigmática inscrição de letras luminosas a dançarem furtivas. Que dizia o letreiro? “Entrada só para os raros” e “Só para loucos”. Olhei inquisitivamente para os velhos muros, desejando secretamente que o prodígio se repetisse, que a inscrição me convidasse como louco, que a porta me deixasse entrar. Ali, provavelmente, estaria o que eu desejava, ali, talvez, interpretassem minha música. Resignado, olhava o escuro muro de pedra, cercado de trevas, imerso profundamente em seu sono. E não havia nenhuma porta nem arco ogival, só o escuro e silencioso muro sem aberturas. Passei adiante sorrindo, saudei amistosamente o muro. “Durma bem. Não vou acordá-lo. Qualquer dia será derrubado ou o cobrirão de anúncios de firmas cobiçosas de dinheiro: mas agora, ainda está aí, belo e quieto como sempre, e eu o amo por isso.” Saindo de um escuro beco, surgiu à minha frente, assustando-me, um indivíduo, um solitário caminhante que tarde se recolhia ao lar; de passo fatigado, com gorro na cabeça, uma blusa azul, levava ao ombro um pau donde pendia um cartaz e, diante do ventre, preso por correias, um pequeno caixote, como os vendedores ambulantes de feira. Lento, caminhava à frente; ao passar por mim não se voltou para olhar-me, pois se o tivesse feito, até que o teria cumprimentado e possivelmente lhe daria um cigarro. À luz do poste seguinte, tentei ler seu estandarte, o anúncio vermelho cravado na extremidade da haste; mas esta oscilava tanto que não consegui decifrar nada. Chamei o homem e lhe pedi que me mostrasse o placar. Deteve-se e segurou a haste um pouco mais erguida, de modo que pude soletrar em caracteres maiúsculos e inseguros:

NOITADA ANARQUISTA!
TEATRO MÁGICO! ENTRADA SÓ PARA RA...

— Estava à sua procura — exclamei alegre. — Que noitada é essa? Onde é? Quando vai ser?

O homem continuou a caminhar.

— Não é para qualquer um — disse indiferente, com voz sonolenta, e continuou seu caminho.

— Espere — gritei, correndo atrás dele. — Que leva nessa caixa? Gostaria de comprar-lhe alguma coisa.

Sem se deter, apanhou um folheto na caixa, mecanicamente, entregou-o a mim. Apanhei e guardei-o. Enquanto desabotoava o casaco para tirar dinheiro, o homem desapareceu por um portão, que se cerrou às suas costas. No pátio, ouvi soarem ainda seus passos pesados: primeiro, nas lajes do pavimento; depois, a subir uma escada de madeira; e não ouvi mais nada. Foi quando, de repente, me senti também muito cansado e tive a sensação de que era muito tarde e que seria conveniente regressar a casa. Corri apressado, e logo me encontrei em meu quarteirão, após atravessar as adormecidas ruelas do arrabalde, onde moravam, em pequenas casas muito limpas, atrás de um pouco de grama e hera, funcionários públicos e pequenos pensionistas. Passando diante da hera, diante da grama, diante do pequeno abeto, cheguei à porta de casa, procurei o buraco da fechadura, achei o interruptor da luz, deslizei pela porta envidraçada, passei diante dos armários envernizados e do vasos de planta e me enfurnei em meu quarto, em minha pequena aparência de lar, onde me esperava a poltrona e a estufa, o tinteiro e a caixa de tintas, Novalis e Dostoievski, assim como aos outros homens, os homens verdadeiros, os esperam quando voltam a casa a mãe ou a mulher, os filhos, os criados, os cães e os gatos. Quando tirei o casaco úmido, voltou a cair-me entre as mãos o pequeno folheto. Era um livrinho delgado, impresso em papel muito ruim; um livreto de feira, como aqueles fascículos intitulados O Homem que Nasceu em Janeiro ou Como Tornar-se Vinte Anos Mais Jovem em Oito Dias Mas, quando me achava acomodado na poltrona e pusera os óculos para ler, com grande admiração e com a sensação repentina de que ali estava encerrado o meu Destino, dei com o título que figurava na capa do opúsculo: Tratado do Lobo da Estepe. Somente para os raros. E seguia o conteúdo do livreto, que li de um só fôlego, em contínuo e crescente interesse.
Hermann Hesse, "O Lobo da Estepe"

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