terça-feira, abril 19

A armadilha da hegemonia da escrita

Uma terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem residência exclusiva no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal de menoridade. Com alguma condescendência, é usual pensar a oralidade como patrimônio tradicional que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.

Certa vez, um menino de rua em Maputo veio-me devolver um livro que ele vira nas mãos de uma estudante à saída da escola. Notando a minha fotografia na capa, esse menino acreditou que a estudante me tinha roubado o livro.

Me comoveu esse menino que atravessou a cidade para me devolver algo que, no entender dele, me pertencia. Mas o que ele me entregava era mais do que um objeto. Ele me entregava a inquietação profunda, a interrogação: a quem pertence realmente um livro? Ele é nosso porque o adquirimos, sim. O livro deve ser objeto e mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse objeto quando ele deixa de ser objeto e deixa de ser mercadoria. O livro só cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto, quando tomamos posse dele como seus co-autores.

A mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Mas em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da escrita instalou-se com absoluta hegemonia. Nesses casos, pressupostos filosóficos do mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos. Algumas das ideias que venho defendendo nesta comunicação estão claramente presentes na epistemologia da ruralidade africana.

A concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: “Eu sou os outros”; a ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes conceitos constam da rica cosmogonia rural africana.

É evidente que não se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele necessita de enfrentar o confronto com a modernidade. O desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da oralidade fosse eliminada. O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade.

Mia Couto, "E se Obama fosse africano"

Nenhum comentário:

Postar um comentário