sábado, abril 9

Touradas

Transformaram o antigo velódromo em circo de touros; metade das arquibancadas virou Sombra, a mil-réis; e a outra metade, Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de cetim amarelo e verde está um inteligente pegado a laço e imensamente bronco. Ao seu lado, um clarim tuberculoso; cada vez que sopra na corneta falta-lhe fôlego para um som completo — e o povo ri-se.

Toureiro de verdade há um, o Antônio Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do inteligente. Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente rabicho, completam a cuadrilla.

A cada passinho Corajoso berra para o inteligente: “Dê ordem de recolhida, faça isto, faça aquilo”. E o pobre-diabo se vê tonto para conciliar uma burrice inata com os deveres do cargo.

O povo vaia ou aplaude num tom amolecado que é toda a graça da festa. Reles, mas divertido. “Feche a boca, negro! Está com fome?” (isto para um toureiro mulato). “Recolham esse canivete aleijado!” (para um zebuzinho preto muito magro). “Hu! hu! Tira leite dessa vaca, ó canudo de pito!”

Uma farpa fere um boi na veia; o sangue começa a correr. Enternecimento geral. Para-se a tourada para remendar-se o boi. Laçam-no, cosem-lhe a ferida – operação demorada que consome vinte minutos. Tomado de piedade, o povo não consente que farpeiem os restantes.

Há palhaço — um palhaço que faz jus ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Moleza. Tem preguiça até de andar, preferindo apanhar marradas a correr. Lá quando a banda de música ataca a valsa Amoureuse, o ladrão atravessa a arena dançando. Mas dança com tamanha preguiça que o povo rompe num berreiro: “Lincha o cínico! Mata!”. E chovem-lhe em cima toda sorte de desaforos — e cascas de pinhão…

Remata a festa a “pantomina”, como diz o programa. Consiste no Pançudo, figura de um cômico prodigioso. Tem tanto de largo como de alto. Perfeita esfera encimada por uma cabeça e “embaixada” por dois pés. É um homem acolchoado. Mal aparece, em passinhos miúdos e lentos, uma voz o denuncia: “É o Zé de Mamã! Aí, negro safado!”. E toda a gente morre de rir, adivinhando o pobre preto, muito sério, a suar em bicas dentro da couraça de colchões. O boi investe, marra-o, arremessa-o longe. Os toureiros reerguem-no. Nova investida, novo rebolar. E assim até que o touro, desconfiado, se recuse à pagodeira. Soa por fim o toque de recolher e, todo esburacado, com a palhaça à mostra, lá vai para os bastidores o pobre Zé de Mamã, rolado qual uma pipa.
Monteiro Lobato, "Vidinha ociosa"

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