quarta-feira, abril 13

Réquiem para os bares mortos

Me perdia muito pelas grutas sombrias dos bares. À noite, conchas iluminadas, a ressoar em profundezas submarinas. Hoje sou um homem derramado. Fugindo à tempestade, entrei uma vez no Nacional, e lá se erguia – portentosa figura – um velho, alto e cavo, a recitar os sonetos de Mallarmé. Foi uma visão dura, hermética, definitiva.

Iain Faulkner,
Antros de perdição – sim, é verdade – os bares são odiados por mães, esposas, filhos. A bebida é quase sempre ordinária; os moços que servem são falsos; os proprietários são ávidos. Rixas, despesas descabidas, saúde comprometida – os bares não prestam. Mas depois os bares morrem, e de seus túmulos surgem os espelhos, os mármores, os painéis históricos e a matéria plástica das agências bancárias. O tempo trança e destrança os velhos frequentadores, cúmplices de um espaço, de duas ou três anedotas, de uma canção dissipada em dias e semanas, cúmplices de uma certa mistura de luz e sombra. Então os velhos frequentadores são como peixes desentocados, e os bares antigos perdem suas arestas, suas escamas pontiagudas, seus vômitos repugnantes. Ali os amigos foram mais amigos, os inimigos, mais inimigos, as mulheres, mais compreensivas, e a vida tinha um programa.

Hoje sou um homem entornado. Mas no tempo do Alvear, por exemplo, alcei-me nas tristezas mais lindas de beira-mar. Ama-se o bar morto porque ele possui o dom – o dom é ilusão – de coagular o tempo. Habitamos essas gotas luminosas. Elas revolvem à nossa frente, várias, aparentemente opacas. Mas, se aproximamos a visão, esses cristais mágicos começam a funcionar como um palco, cheios de vida. Descortina-se em luz amarelada o bar do Hotel Central: há ostras em uma bandeja, fatias coradas de rosbife e uma garrafa de Old Parr. São três à mesa: um mau pintor, um mau milionário e um mau almirante. Apesar de simpáticos, nunca nos falamos. Mas hoje (quando é hoje?) eu os visito com frequência nesse coágulo de treva e refulgência, onde os três convivas se abrigaram da morte. À meia-noite, o milionário faz a barba com uma gilete nua, molhando o rosto em uísque.

O Vermelhinho, com um pouco de exagero, foi um entreposto de todas as motivações humanas. Poetas negros – reaparecidos pela primeira vez depois do Simbolismo – defendiam do naufrágio da raça, apertando-os contra o peito, originais que nunca seriam publicados. Foi uma época de facilitário poético, com um crédito de esperança a perder de vista. Não se fechava a porta da glória a ninguém. Todas as estradas do país se entrecruzavam no Vermelhinho, que ainda guardava embrulhos e recados. A geração tomava batida com fervor e a esquerda festiva punha seus primeiros ovos, discretamente, nas cadeiras de palhinha.
Acreditava-se em samba.

A vida tinha um caminho,
a vida tinha mais vinho
nos juncos do Vermelhinho.


Em frente, no alto, entre vegetações grossas, ficava o bar da ABI. Tinha a princípio um certo rigor suíço, prematuramente desmoralizado. Alemães, árabes, italianos, nordestinos, gaúchos e mineiros, com esse cinismo que é a nossa força destrutiva abrasileiraram depressa o terraço. Mais de uma senhora tornou-se mãe de repente entre as grossas vegetações; e instituiu-se, por força, o espeto.
Hoje sou um homem esvaziado de seu conteúdo: vou alcançando a perfeição do vazio. Já estou seguindo com pouco receio por esses Tibetes sem princípio e sem fim. Mas cumpri as estações do caminho; paguei por tudo aquilo que aprendi.
Bar morto, bêbedo morto, caminho morto. Há azulões no crepúsculo; ou uma saudade de azulões. É sempre safra de cajus quando me surge o Pardellas.

Consumo de novo as tardes consumidas. Aí me sinto com o charuto de Eustáquio, os óculos de Santa, e um tomo das Origens da França contemporânea, conduzido por Zé Lins nas tardes da Cinelândia e do Castelo de antigamente. Ali a vida era canto e conto. Mas no velho Recreio as sombras se espessam, aglutinadas. Quem mastiga sem convicção peito de boi com molho de raiz forte?

Recreio velho, rogai por nós. Túnel da Lapa, Chave de Ouro, rogai por nós. Hoje sou um homem sem mais nada. Rogo por vós. Rogo por vós um céu, com o vosso firmamento, os vossos luzeiros, os vossos ornatos, os vossos homens imaginosos e as vossas freguesas perdidas. E assim me recolho do chão em que fui derramado e subo até vós.
Paulo Mendes Campos, "O amor acaba"

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