sábado, abril 16

Minha vida como pivete

Não há segundo ato nas vidas americanas, disse Scott Fitzgerald, mas há nas vidas brasileiras: segundo, terceiro, décimo atos. Num desses atos – misteriosos são os desígnios da Providência – fui um pivete.

Não por muito tempo, devo dizer. Na verdade, por muito pouco tempo, e em circunstâncias especiais. Aconteceu no Bom Fim, e numa época em que o bairro ainda não era barra-pesada. Nós estávamos na rua João Telles, uma noite, e jogávamos futebol no meio da rua. O futebol não é um esporte silencioso, e algazarra nós fazíamos, não muita, mas o suficiente para incomodar um dos moradores, que veio à janela e mandou-nos embora. Seguiu-se uma áspera troca de palavras, e a janela fechou-se, no que parecia uma retirada.

Não era. Enquanto continuávamos o jogo, o homem chamava a polícia. Minutos depois encostava na rua uma viatura da PM. Podíamos, ou devíamos ter fugido: na verdade, porém, não nos ocorria que o objetivo das forças da lei era o nosso precário futebol. Para nossa surpresa os policiais vieram em nossa direção. Um deles olhou-me (nunca imaginei ter aparência perigosa) e, abrindo a porta do camburão, ordenou:

-- Entra!

Vacilei. Olhei lá dentro. Era um compartimento escuro e apertado aquele, um lugar de aparência sombria. Mas o pior era o significado de entrar ali. Quando a porta se fechasse, com estrondo, sobre mim, eu não apenas estaria separado de meu bairro, de meus amigos, de minha família. Eu estaria penetrando numa outra realidade, tão escura, apertada e sombria quanto o compartimento dos presos no camburão. Eu estaria ingressando na marginalidade, e quem me garantia que dela sairia? Não seria aquele o meu primeiro passo numa carreira (talvez bem-sucedida; talvez trágica; quem conhece os desígnios da Providência?) de gângster?

O policial esperava, impaciente, e eu não me decidia, mas aí o destino interveio, sob a forma de um morador. Dirigindo-se aos homens da lei, ele ponderou que não valia a pena me levar, mesmo porque me conhecia e estava seguro de que eu era um bom guri.

-- Garanto que ele não incomoda mais – repetia.

Os homens se olharam e resolveram que não valia a pena gastar uma ficha policial comigo. De modo que depois de algumas ameaças embarcaram na viatura e se foram.

Era o Bom Fim, não a Candelária; era o Brasil, não a Europa Oriental. Escapei do Holocausto porque meus pais vieram para este país, onde nasci. E escapei porque havia alguém ali para dizer que, apesar das aparências, eu era um bom guri. Tive sorte. Temos, todos nós, muita sorte. Em nome desta sorte devemos pensar, cada vez que olhamos um suposto pivete, que ele pode, afinal, ser um bom guri.

Moacyr Scliar

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