domingo, abril 24

Dos livros e do vício impune da Leitura

A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica. Prazer, já vimos como pode sê-lo – e de que maneira absorvente! Quanto a instrução, não há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem. A falta de leitura pode ser a causa de certos impedimentos aparentemente inexplicáveis. Contava o proprietário de uma grande empresa americana, que dependia fundamentalmente do espírito inventivo dos seus engenheiros, para o êxito comercial da firma, que, a certa altura, começou a sentir-se desconfortável com o facto de nunca dar aos seus indispensáveis técnicos uma hipótese de chegarem ao topo da hierarquia da empresa. Mantinha-os a investigar, num nível mais baixo do organograma, embora com salários elevados, ficando os lugares de topo para gente do direito e da economia. Bem pagos, sim, promovidos, não. Permaneciam lá em baixo, a produzir os “gadgets” que a empresa vendia… Por fim, o proprietário, para aliviar a sua consciência, decidiu que era injusto não dar aos seus engenheiros, a quem a empresa tanto devia, a mesma oportunidade de promoção que dava aos juristas e aos economistas. E começou a promovê-los, empurrando-os suavemente pelo organograma acima. Mas acabou a verificar que, a partir de um certo nível da hierarquia, nem eles se sentiam confortáveis com as tarefas de pura gestão, nem os lugares pareciam ajustar-se-lhes. Intrigado, tentou arduamente, durante algum tempo, perceber a razão disto, uma vez que não queria que a injustiça se perpetuasse. O tempo foi passando, sem que ele chegasse a uma conclusão. Até que, um dia, para seu grande espanto, deu com a resposta: o que aos seus engenheiros faltava, para se sentirem mais confortáveis no topo da hierarquia, era um bom bocado de leitura e de cultura geral. A leitura abre-nos portas e ilumina realidades, idiossincrasias, conflitos, emoções, preconceitos, ambições, etc., que um chefe de empresa não pode ignorar. A leitura não fornece um apêndice decorativo ao grande empresário – é simplesmente uma necessidade. Um dos grandes engenheiros electrotécnicos do nosso país, que foi um grande Professor do Instituto Superior Técnico e um notável Ministro da Economia – Ferreira Dias – era também um homem de grande cultura, com a qual muito enriqueceu o seu magistério, do qual, nós, alunos, aproveitámos, gulosamente: durante as viagens de fim de curso, com ele, como cicerone, ou sempre que uma oportunidade surgia. O grande matemático, Mira Fernandes, era um homem cultíssimo, como o era Bento de Jesus Caraça, fundador da legendária Biblioteca Cosmos, e também o Professor de Física do Instituto Superior Técnico, António da Silveira (que escrevia admiravelmente). Os grandes profissionais, os verdadeiramente de topo, não rejeitam a leitura, até ao fim das suas vidas. Aprender até morrer – é o lema. O mítico empresário Henry Ford disse-o de forma categórica: “Quem quer que cesse de aprender é velho, quer tenha vinte, quer tenha cinquenta anos. Quem quer que continue a aprender mantém-se eternamente jovem.” Só os profissionais e empresários medíocres se confinam no universo estreito e fechado da sua “especialidade”. Egas Moniz foi um grande médico, um grande Professor, um notável investigador e um espírito aberto à cultura e à literatura.


Por outro lado, a grande literatura é também boa e eficaz terapêutica para os nossos momentos de crise. No meio dos desarrumos e tumultos (e até injustiças) que os tempos revolucionários inevitavelmente trazem às nossas vidas, a leitura de um grande livro que nos relate tempos semelhantes, outrora vividos por outros, como, por exemplo, Les Dieux Ont Soif (Os Deuses Têm Sede), de Anatole France, conseguirá acalmar a nossa ansiedade, pondo-a em razoável perspectiva: porque nos mostra, com talento e engenho, como outros já passaram pelo mesmo, tendo depois a tempestade acabado por amainar. Mesmo à proximidade da morte, a leitura de um livro empolgante pode trazer inesperado prazer, distracção e consolo. Lembro-me do meu amigo, Dr. Fernando Ferreira, notável psiquiatra e homem cultíssimo, no seu leito de morte, em Lourenço Marques. Fui vê-lo, um dia, já perto do fim. Na sua mesa de cabeceira, como lenitivo prometido, um medicamento infalível: um romance de Camilo. À saída, perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse algum livro. Respondeu-me sem hesitar: “Traga-me o último livro de Domingos Monteiro”. Óptima escolha, pensei eu: um dos nossos maiores contistas. Levei-lhe, um ou dos dias depois, Letícia e o Lobo Júpiter, que agradeceu efusivamente. Espero que o tenha lido antes do seu falecimento, que teve lugar não muito depois.

As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.

A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos:

“Tenho algumas vezes sonhado que, no dia em que o Dia do Juízo amanhecer e os grandes conquistadores e juristas vierem receber as suas recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes gravados indelevelmente no mármore imperecível – o Altíssimo se virará para S. Pedro e dir-lhe-á, não sem uma certa inveja, quando nos vir a nós aproximar-nos, com os nossos livros debaixo dos braços: ‘Olha, estes não precisam de recompensa. Não há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!’
Eugénio Lisboa, "Vamos Ler, um cânone para o leitor relutante"

Nenhum comentário:

Postar um comentário