domingo, abril 10

A agonia da paz

Nos primeiros anos a Inglaterra teve tão pouco de exílio para mim como Sorrento tivera outrora para Gorki. A Áustria continuava a existir , mesmo depois da chamada "revolução" e da tentativa dos nacional-socialistas , logo a seguir, de se apoderarem do país por meio de um golpe de Estado e do assassinato de DollfuB. A agonia da minha pátria iria durar ainda quatro anos. Eu podia regressar a qualquer hora, não estava exilado, nem estigmatizado. Os meus livros ainda continuavam a salvo na minha casa de Salzburgo, eu ainda era detentor do meu passaporte austríaco, a pátria continuava a ser a minha pátria e eu ainda era seu cidadão - e cidadão de pleno direito. Ainda não tivera início aquela terrível condição de apátrida que não é possível explicar a quem não a tenha sofrido na pele, aquela sensação , exasperante para os nervos , de cambalear no vazio de olhos abertos e bem despertos, e de saber que se pode ser escorraçado a qualquer momento de qualquer lugar onde se tenham criado raízes. Mas eu apenas estava no primeiro começo. Em todo o caso, tratou-se de uma chegada diferente quando, em finais de Fevereiro de 1934, desci do comboio em Victoria Station; uma cidade parece-nos diferente consoante se tenha decidido aí permanecer ou apenas visitá-la. Eu não sabia quanto tempo iria viver em Londre. Só uma coisa me interessava: poder voltar ao meu próprio trabalho, defender a minha liberdade interior e exterior. Não comprei casa, porque toda a propriedade implica uma nova ligação, mas aluguei um pequeno flat, apenas suficientemente amplo para conseguir guardar, em dois armários de parede , os poucos livros que não estava disposto a dispensar, e instalar uma secretária. Isso era tudo o que um trabalhador das coisas do espírito precisava de ter à sua volta. É verdade que não sobrava nenhum espaço para a vida social. Mas eu preferia viver em limites mais estreitos para poder viajar livremente de quando em vez: sem me dar conta, a minha vida já se tinha orientado para o provisório em detrimento do permanente.

Na primeira noite - já tinha escurecido e os contornos das paredes diluíam-se na penumbra - cheguei ao pequeno apartamento, finalmente pronto, e estremeci. Parecia-me que, nesse preciso segundo, tinha entrado naquele outro pequeno apartamento que arranjara em Viena, havia quase trinta anos, com os seus compartimentos igualmente exíguos e tendo como única saudação de boas-vindas aqueles mesmos livros nas paredes e os olhos alucinados do King John, de Blake, que me acompanha por todo o lado. Tive realmente que cair em mim um momento, pois durante muitos anos nunca mais me lembrara daquela primeira habitação. Seria isto um símbolo da minha vida - que durante tanto tempo se espraiara em toda a sua amplidão -e que agora regredia aos limites do passado , um símbolo de mim , sombra agora de mim mesmo? Quando escolhi aquele quarto em Viena, trinta anos antes, tratava-se de um começo. Ainda não tinha criado nada, pelo menos nada de essencial; os meus livros, o meu nome ainda não existiam no meu país. Agora estranha semelhança est - os meus livros tinham voltado a desaparecer da língua que era a deles e o que eu escrevia era ignorado na Alemanha. Os amigos estavam longe, o velho círculo das relações destruído , perdida a casa com as suas coleções e quadros e livros; tal como então , encontrava-se novamente rodeado de estranhos. Tudo o que entretanto tinha tentado, feito, aprendido, usufruído, parecia ter sido levado pelo vento; com mais de cinquenta anos de idade, encontrava-me de novo num começo, era de novo o estudante que se senta à sua secretária e vai trotando todas as manhãs até à biblioteca só que já não era tão crédulo, tão entusiasta, tinha um reflexo cinzento no cabelo e uma leve penumbra de desânimo sobre a alma cansada."
Stefan Zweig, "O Mundo de Ontem"

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