quarta-feira, agosto 30

Bom passeio!

 


Na ilha

Lembrava quase tanto um navio quanto uma casa. Colocada ali para resistir às tempestades, incrustava-se na ilha como se fosse parte integrante dela; mas de todas as janelas descortinava-se o mar e era muito arejada, de modo que não se sentia calor nem nas noites mais quentes. Pintada de branco para ficar bem fresca no verão, podia-se avistá-la de longe, na Corrente do Golfo. Era o ponto culminante da ilha, com exceção da extensa plantação de altos pés de casuarina, a primeira coisa que se enxergava ao se acercar da ilha por via marítima. Logo depois da mancha escura das casuarinas acima da linha do horizonte, via-se o vulto branco da casa. Aí então, à medida que se chegava mais perto, a ilha emergia inteira, com os coqueirais, as cabanas de madeira, a faixa branca da praia, e o verde da Ilha Sul se estendendo ao fundo. Thomas Hudson nunca avistava aquela casa na ilha sem que ficasse tomado por uma sensação de felicidade. Sempre a imaginava exatamente como um barco. No inverno, quando soprava o vento norte e esfriava de fato, ela era quente e confortável porque possuía a única lareira na ilha. Uma vasta lareira aberta onde Thomas Hudson queimava sarrafos lançados à praia pelas ondas.

Guardava-os numa pilha enorme, encostados à parede do lado sul da casa. Estavam esbranquiçados de sol, cobertos de areia trazida pelo vento, e afeiçoara-se tanto a vários pedaços que até sentia ódio de ter que queimá-los. Mas depois das grandes tempestades sempre surgiam outros na praia, e terminava achando divertido queimar mesmo os pedaços de que mais gostava. Sabia que o mar traria novos e nas noites frias sentava-se na ampla poltrona diante do fogo, lendo à luz do lampião pousado na grossa mesa de tábuas, interrompendo a leitura para escutar o noroeste soprando lá fora, o estrondo da rebentação, e contemplar os enormes sarrafos esbranquiçados a arder.

Às vezes apagava o lampião e deitava-se em cima do tapete no chão, detendo-se a fitar as pontas coloridas que o sal marinho e a areia desenhavam nas chamas enquanto a lenha ardia. Deitado, os olhos nivelavam-se com a altura da madeira que queimava, tornando nítida a linha de separação entre a chama e os sarrafos, o que o deixava ao mesmo tempo triste e alegre. Toda a madeira que queimasse o afectava desse modo. Mas os sarrafos trazidos pelo mar a arder ali no fogo causavam-lhe uma sensação que não conseguia definir. Achou que talvez fosse erro queimá-los, uma vez que gostava tanto deles; mas não tinha remorsos por causa disso.

Ao deitar-se no chão sentia-se protegido contra o vento, embora, na realidade, o vento açoitasse até os cantos inferiores da casa, a relva mais baixa da ilha, infiltrando-se pelas raízes da vegetação rasteira da praia, pelos carrapichos e pela própria areia. No chão, podia sentir a batida da rebentação tal como se lembrava de ter sentido o disparo de poderosos canhões quando se jogava por terra perto de uma peça de artilharia há muitos e muitos anos, quando ainda era menino.

A lareira era uma coisa formidável; no inverno e durante todos os outros meses contemplava-a com carinho, imaginando como seria quando o inverno chegasse de novo. O inverno era a melhor de todas as estações na ilha, e aguardava-o com impaciência o resto do ano inteiro.
Ernest Hemingway, "Ilhas na Corrente"

Nevoeiro


Desconfio muito que, nos dias de nevoeiro, os fantasmas aproveitam para passear incógnitos pelas ruas…
Mário Quintana, "Caderno H"

Um papagaio falador

Quem principiou a história do papagaio foi Cesária, mas os homens se aproximaram da esteira onde ela cochichava com Das Dores e depois de alguns minutos Alexandre concluiu a narração. Cesária falou assim:

– O nosso casamento foi pouco depois da vaquejada. Você se lembra, Das Dores? O caso da novilha se espalhou de repente e o nome de Alexandre correu de boca em boca. Ele não disse isto porque não gosta de pabulagem, mas acredite que ficou o homem mais importante do sertão. Os fazendeiros tiravam o chapéu quando passavam por ele e cumprimentavam com respeito: — “Como vai a obrigação, major Alexandre?” É isto, Das Dores. Alexandre num instante virou major. Meu pai era pessoa de muito cabedal, e todo mundo por aquelas bandas queria casar comigo. Eu não fazia conta de ninguém, mas quando Alexandre se apresentou, bem vestido e bem-falante, quebrou-me as forças. Vinha preparado, com um rebenque de cabo de ouro, esporas de ouro…
– Montado no bode? perguntou Das Dores.

– Não, respondeu Cesária. O bode era para as vaquejadas. Vinha num cavalo baixeiro, arreado com arreios de ouro, espelhando. Só queria que você visse, Das Dores. Meu pai ficou muito satisfeito com o pedido e eu concordei logo: — “Se vossemecê acha que deve ser, está certo.” Marcou-se o dia e preparou-se o enxoval, que foi uma beleza, Das Dores. Só queria que você visse. Um enxoval em que trabalharam todas as costureiras do lugar. A festa do nosso casamento durou uma semana. Muita dança, muita bebida, muita comedoria. Não ficou peru nem porco para semente. Veio o vigário, veio o promotor, veio o comandante do destacamento, veio o prefeito. Meu pai estava-se estragando, mas era senhor de muitas posses e dizia: — “Festa é festa. Mais vale um gosto que quatro vinténs.” Quando os derradeiros convidados se retiraram, fomos morar na nossa casa nova, uma casa bonita como as da cidade. E o pai de Alexandre deu a ele um baú cheio de moedas de ouro. Aí era preciso a gente tratar da vida. Eu vendia e comprava, dirigia as coisas direito. Sempre tive cadência para as arrumações. Mas as viagens e as transações de muito dinheiro quem fazia era Alexandre. Na primeira viagem dele encomendei um papagaio. Queria um papagaio falador, custasse o que custasse. Agora você conta o resto, Alexandre.

– Não senhora, respondeu o marido. Você não começou a história? Então acabe.

– Não senhor, replicou Cesária. Comecei porque podia começar, mas acabar não acabo. Contei a minha parte, que dei a encomenda, mas quem comprou o papagaio foi você.

Depois de muitas razões, Alexandre se resolveu a tomar a palavra.

– Em vista disso, eu conto. Isto é, conto o fim da história, que o princípio os senhores já sabem. E nesse princípio não acrescento nada, porque tudo quanto Cesária disse é a pura verdade. Amarro o negócio no ponto em que ela ficou. Realmente esse caso não tem importância, e até nem sei como Cesária foi mexer nele. Papagaio é bicho besta, ninguém presta atenção a lorotas de papagaio. Esse era melhor que os outros, sem dúvida. Eu nem me lembrava dele, mas como a patroa foi desenterrá-lo, vá lá. Escutem. Estávamos na viagem, não é isto? Viagem do sertão à mata, para vender gado. Como era a primeira que eu fazia, a separação foi custosa. Cesária chorou, deu-me conselhos, afinal se aquietou com a esperança de possuir um louro falador. Prometer eu não prometia, que não ia oferecer a minha mulher um bicho ordinário, mas se aparecesse coisa boa, Cesária estava servida. Separei o gado, escolhi os tangerinos, despedi-me da mulher depois de muitos poréns e tomei o caminho do sul, sempre aumentando a boiada com o que havia de melhor por aquelas redondezas. Aves de pena vi em quantidade, araras, ararões, e canindés, mas viventes de pouca fala. Procurei, pedi informações — não achei nada que servisse. Larguei a encomenda e decidi levar uma lembrança diferente para Cesária, volta de ouro ou corte de pano fino. Ora um dia de calor bati numa porta, com vontade de pedir água: — “Ô de casa!” Uma voz de homem perguntou lá de dentro: — “Ô de fora! Quem é?” E eu respondi: — “É de paz. O senhor faz favor de arranjar uma sede de água para um viajante.” — “Não posso, tornou a voz. Não posso porque estou amarrado.” Espantei-me: — “Como? Quem amarrou o senhor? Diga, que eu desamarro.” — “Não se incomode não, moço, foi a resposta. Aqui em casa o costume é este. Vivo acorrentado.” — Nessa altura uma velha apareceu com um caneco de água e falou: — “Cala a boca. Deixa de tomar confiança com quem tu não conheces.” Bebi e ia agradecer quando percebi que ela se dirigia a um papagaio que batia as asas, na gaiola pendurada à parede. Não é que eu tinha sido embromado, comendo o bicho por gente? — “Sinha dona, perguntei, vossemecê me vende esse louro?” — “Não vendo não, moço, é de estimação.” Eu cantei a velha: — “Que seja de estimação não duvido. Mas pense direito, sinha dona. Quem tem vida morre. Se botarem mau-olhado nele, vossemecê fica sem mel nem cabaço. Eu pago bem. Faça preço no papagaio, dona.” A velha endureceu, depois chegou às boas e acabou pedindo pelo bicho um despropósito. Discutimos e findamos o ajuste, comprei o papagaio por quinhentos e cinquenta e quatro mil e setecentos réis. Vejam que dinheirão. Quinhentos e cinquenta e quatro mil e setecentos. Bem. Recebi a gaiola e fiquei atrapalhado. Como havia de levá-la numa viagem que ia durar meses? Depois de refletir, desocupei uma bolsa de roupa, fiz uns buracos nela e meti ali o papagaio, que protestou, muito contrariado. Arrumei a bolsa no meio de uma carga e tocamos para a frente. Onde andei e quanto ganhei não preciso contar, basta dizer que a boiada se vendeu e fiz bom negócio. Conheci homens de consideração e vi sobrados. Quando voltei, trazia um surrão cheio de ouro e cargas de mantimentos. Dei uma festa quase tão grande como a do casório. O povo da rua se admirou, meu pai e meu sogro arregalaram os olhos. Eu de correntão no peito, eu lorde, mandando abrir caixas de bebidas. Quem quisesse beber bebia até cair. Dinheiro não faltava. Enfim tudo se acomodou, o pessoal saiu e nós fomos endireitar a casa, varrer, lavar, limpar, arranjar as coisas. Cesária passou um dia arrumando a bagagem, abrindo malas e guardando troços nos armários. No meio do trabalho me chamou: — “Está aqui uma bolsa furada, Alexandre. Que é isto?” E eu me lembrei: — “Ai, Cesária! É o papagaio. Tranquei o papagaio na bolsa. Coitado. Esqueci-me dele e o pobre viajou sem comer.” Corri mais que depressa e fui abrir a bolsa. Encontrei o infeliz nas últimas, enrolado num canto, feio como um pinto molhado. Cesária trouxe um pires de leite, mas era tarde, não havia jeito não. O papagaio olhou para mim, balançou a cabeça, levantou-se tremendo, encorujado, e disse baixinho: — “Sim senhor, seu major, isto não é coisa que se faça.” Amunhecou e morreu.
Graciliano Ramos, "Histórias de Alexandre"

segunda-feira, agosto 28

Leitura em paz

 


O poema

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há verdadeiro poema que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para além daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.
José Tolentino Mendonça, "A noite abre meus olhos"

Os olhos dos pobres

Ah! Quer saber porque hoje a detesto? Você terá, sem dúvida, menos facilidade em compreendê-lo do que eu em explicá-lo. Considero-a o mais belo exemplo de impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Passamos juntos um longo dia, que me parecera curto. Tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns e que as nossas almas seriam uma só. Ora, esse sonho nada tem de original, a não ser o fato de que, sonhado por todos os homens, não foi realizado por nenhum.

À tarde, sentindo-se um pouco fatigada, você quis sentar-se defronte a um café novo, na esquina de uma nova avenida, ainda cheia de asfalto e já mostrando gloriosamente esplendores inacabados. O café estava cintilante. O gás tinha todo o ardor de um começo, iluminando com toda a intensidade as paredes resplandentes de brancura, as cascatas deslumbrantes dos espelhos, o ouro das molduras e das cornijas, os criados de bochechas redondas puxados por cães presos à corrente, as damas sorrindo ao falcão trepado no punho, as ninfas e as deusas carregando frutas, pastéis e caça na cabeça, as Hebes e os Ganimedes ostentando com o braço estendido a pequena ânfora de néctar, ou o obelisco bicolor dos sorvetes aromáticos: toda a história e toda a mitologia postas a serviço da gulodice.

De pé diante de nós, na calçada, um homem de uns quarenta anos, rosto abatido, barba grisalha, dava a mão a um menino e no outro braço segurava um ser pequenino fraco demais para andar. Fazia as vezes de ama, para os filhos respirarem o ar da tarde. Todos em andrajos. As três fisionomias estavam extraordinariamente sérias e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, apenas diversificada pela idade.

Diziam os olhos do pai: — Como é bonito! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo foi trazido para essas paredes.

Os olhos do menino diziam: — Como é bonito! Mas, é uma casa onde só pode entrar gente que não é como nós.

Quanto aos olhos do pequenino, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa além de uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cancioneiros que o prazer torna a alma bondosa e enternece o coração.
Tinham razão, essa tarde. Eu não só estava enternecido com essa família de olhos, mas me sentia um tanto envergonhado dos nossos copos e garrafas, maiores do que a nossa sede.

Fitei então os meus nos seus, meu amor, para ler o meu pensamento. E estava mergulhado nos seus olhos, tão belos e tão singularmente doces, nos seus olhos verdes, quando você me disse: — Não suporto essa gente de olhos escancarados como porteiras! Porque você não pede ao dono do café que os afaste daqui? Como é difícil um entendimento, anjo querido! E como o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"

A mão no ombro

O homem estranhou aquele céu verde-cinza com a lua de cera coroada por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco. Era uma lua ou um sol apagado? Difícil saber se estava anoitecendo ou se já era manhã no jardim que tinha a luminosidade fosca de uma antiga moeda de cobre. Estranhou o perfume úmido de ervas. E o silêncio cristalizado como num quadro, com um homem (ele próprio) fazendo parte do cenário. Foi andando pela alameda atapetada de folhas cor de brasa mas não era outono. Nem primavera porque faltava às flores o hálito doce avisando as borboletas, não viu borboletas. Nem pássaros. Abriu a mão no tronco da figueira viva mas fria: um tronco sem formigas e sem resina, não sabia por que motivo esperava encontrar a resina vidrada nas gretas, não era verão. Nem inverno, embora a frialdade limosa das pedras o fizesse pensar no sobretudo que deixou no cabide do escritório. Um jardim fora do tempo mas dentro do meu tempo, pensou.

O húmus que subia do chão impregnava do mesmo torpor da paisagem. Sentiu-se oco, a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante de um ser sem raízes: se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada. Apanhou um folha. Mas que jardim era esse? Nunca estivera ali nem sabia como o encontrara. Mas sabia – e com que força – que a rotina fora quebrada porque alguma coisa ia acontecer, o quê?! Sentiu o coração disparar. Habituara-se tanto ao cotidiano sem imprevistos, sem mistério. E agora, a loucura desse jardim atravessado em seu caminho. E com estátuas, aquilo não era uma estátua?

Aproximou-se da mocinha de mármore arregaçando graciosamente o vestido para não molhar nem a saia nem os pés descalços. Uma mocinha medrosamente fútil no centro do tanque seco, pisando com cuidado, escolhendo as pedras amontoadas em redor. Mas os pés delicados tinham os vãos dos dedos corroídos por uma época em que a água chegava até eles. Uma estria negra lhe descia do alto da cabeça, deslizava pela face e se perdia ondulante no rego dos seios meio descobertos pelo corpete desatado. Notou que a estria marcara mais profundamente a face, devorando-lhe a asa esquerda do nariz, mas por que a chuva se concentrara só naquele percurso numa obstinação de goteira? Ficou olhando a cabeça encaracolada, os anéis se despencando na nuca que pedia carícia. Me dá sua mão que eu ajudo, ele disse e recuou: um inseto penugento, num enrodilhamento de aranhas, foi saindo de dentro da pequenina orelha.

Deixou cair a folha seca, enfurnou as mãos nos bolsos e seguiu pisando com a mesma prudência da estátua. Contornou o tufo de begônias, e vacilou entre os dois ciprestes (mas o que significava essa estátua?) e enveredou por uma alameda que lhe pareceu menos sombria. Um jardim inocente. E inquietante como o jogo de quebra-cabeça que o pai gostava de jogar com ele: no caprichoso desenho de um bosque estava o caçador escondido, tinha que achá-lo depressa para não perder a partida, vamos, filho, procura nas nuvens, na árvore, não está ele enfolhado naquele ramo? No chão, veja no chão, não forma um boné a curva ali do regato?

Está na escada, ele respondeu. Esse caçador singularmente familiar que viria por detrás, na direção do banco de pedra onde ia se sentar, logo ali adiante tinha um banco. Para não me surpreender desprevenido (detestava surpresas) discretamente ele dará algum sinal antes de pousar a mão no meu ombro. Então eu me viro para ver. Estacou. A revelação o fez cambalear, esvaído numa vertigem: agora joelhos no chão. Seria como uma folha tombando em seu ombro mas se olhasse para trás, se atendesse o chamado. Foi endireitando o corpo. Passou as mãos nos cabelos. Sentia-se observado pelo jardim, julgado até pela roseira de rosas miúdas sorrindo reticente logo adiante. Envergonhou-se. Meu Deus, murmurou num tom de quem pede desculpas por ter entrado em pânico assim com essa facilidade, meu Deus, que papel miserável, e se for um amigo? Simplesmente um amigo? Começou a assobiar e as primeiras notas da melodia o transportaram ao menino antigo com sua roupa de Senhor dos Passos na procissão da Sexta-feira Santa. O Cristo cresceu no esquife de vidro, oscilando suspenso sobre as cabeças, me levanta, mãe, quero ver! Mas continuava alto demais tanto na procissão como depois, lá na igreja, deposto no estrado de panos roxos, fora do esquife para o beija-mão. O remorso velando as caras. O medo atrofiando a marcha dos pés tímidos atrás do Filho de Deus, o que nos espera se até Ele?!… A vontade de que o pesadelo passasse logo e amanhecesse sábado, ressuscitar no sábado! Mas a hora ainda era a da banda de batas pretas. Das tochas. Dos turíbulos atirados para os lados, vupt! vupt! até o extremo das correntes. Falta muito, mãe? A vontade de evasão de tudo quanto era grave e profundo certamente vinha dessa noite: os planos de fuga na primeira esquina, desvencilhar-se da coroa de falsos espinhos, da capa vermelha, fugir do Morto tão divino, mas morto~A procissão seguiu por ruas determinadas, era fácil se desviar dela, descobriu mais tarde. O que continuava difícil era fugir de si mesmo. No fundo secreto, fonte de ansiedade, era sempre noite – os espinhos verdadeiros lhe espetando a carne, ô! por que não amanhece? Quero amanhecer!

Sentou-se no banco verde de musgo, tudo em redor mais quieto e mais úmido agora que chegara ao âmago do jardim. Correu as pontas dos dedos no musgo e achou-o sensível como se lhe brotasse da própria boca. Examinou as unhas. E abaixou-se para tirar a teia de aranha que se colara despedaçada à bainha da calça: o trapezista de malha branca (foi na estréia do circo?) despencou do trapézio lá em cima, varou a rede e se estatelou no picadeiro. A tia tapou-lhe depressa os olhos, não olha, querido! mas por entre os dedos enluvados viu o corpo se debater sob a rede que foi arrastada na queda. As controsões se espaçaram até a imobilidade, só a perna de inseto vibrando ainda. Quando a tia o carregou para fora do circo, o pé em ponta escapava pela rede estraçalhada num último estremecimento. Olhou para o próprio pé adormecido, tentou movê-lo. Mas a dormência já subia até o joelho. Solidário, o braço esquerdo adormeceu em seguida, um pobre braço de chumbo, pensou enternecido com a lembrança de quando aprendera que alquimia era transformar metais vis em ouro, o chumbo era vil? Com a mão direita, recolheu o braço que pendia, avulso. Bondosamente colocou-o sobre os joelhos: já não podia fugir. E fugir para onde se tudo naquele jardim parecia dar na escada? Por ela viria o caçador de boné, eterno habitante de um jardim eterno, só ele mortal. A exceção. E se cheguei até aqui é porque vou morrer. Já? horrorizou-se olhando para os lados mas evitando olhar para trás. A vertigem o fez fechar de novo os olhos. Equilibrou-se tentando se agarrar ao banco, não quero! gritou. Agora não, meu Deus, espera um pouco, ainda não estou preparado! Calou-se, ouvindo os passos que desciam tranqüilamente a escada. Mais tênue do que a brisa um sopro pareceu reavivar a alameda. Agora está nas minhas costas, ele pensou e sentiu o braço se estender na direção do seu ombro. Ouviu a mão ir baixando numa crispação de quem (familiar e contudo cerimonioso) dá um sinal, sou eu. O toque manso. Preciso acordar, ordenou se contraindo inteiro, isto é apenas um sonho! Preciso acordar! acordar. Acordar, ficou repetindo. Abriu os olhos.

Demorou um pouco para reconhecer o travesseiro que apertava contra o peito. Limpou a baba morna que lhe escorria pelo queixo e puxou o cobertor até os ombros. Que sonho! Murmurou abrindo e fechando a mão esquerda, formigante, pesada. Estendeu a perna e quis contar-lhe o sonho do jardim com a morte vindo por detrás: sonhei que ia morrer. Mas ela podia gracejar, a novidade não seria sonhar o contrário? Viou-se para a parede. Não queria nenhum tipo de resposta do gênero bem humorado, como era irritante quando ela exibia seu humor. Gostava de se divertir à custa dos outros mas se encrespava quando se divertiam à sua custa. Massageou o braço dolorido e deu uma vaga resposta quando ela lhe perguntou que gravata queria usar, estava um dia lindo. Era dia ou noite no jardim? Tantas vezes pensara na morte dos outros, entrara mesmo na intimidade de algumas dessas mortes e jamais imaginou que pudesse lhe acontecer o mesmo, jamais. Um dia, quem sabe? Um dia lá longe, mas tão longe que a vista não alcançava essa lonjura, ele próprio se perdendo na poeira de uma velhice remota, diluído no esquecimento. No nada. E agora, nem cinqüenta anos. Examinou o braço. Os dedos. Levantou-se molemente, vestiu o chambre, não era estranho? Isso de não ter pensado em fugir do jardim. Voltou-se para a janela e estendeu a mão para o Sol. Pensei, é claro, mas a perna desatarraxada e o braço advertindo que não podia escapar porque todos os caminhos iam dar na escada, que não havia nada a fazer senão ficar ali no banco, esperando o chamado que viria por detrás, de uma delicadeza implacável. E então? Perguntou-lhe a mulher. Assustou-se. Então o quê?! Ela passava creme na cara, fiscalizando-o através do espelho, mas ele não ia fazer sua ginástica? Hoje não, disse massageando de leve a nuca, chega de ginástica. Chega também de banho? ela perguntou enquando dava tapinhas no queixo. Ele calçou os chinelos: se não estivesse tão cansado, poderia odiá-la. E como desafina! (agora ela cantarolava), nunca teve bom ouvido, a boz até que é agradável mas se não tem bom ouvido… Parou no meio do quarto: o inseto saindo do ouvido da estátua não seria um sinal? Só o inseto se movimentando no jardim parado. O inseto e a morte. Apanhou o maço de cigarro mas deixou-o, hoje fumaria menos. Abriu os braços: esse dolorimento na gaiola do peito era real ou memória do sonho?

Tive um sonho, ele disse passando por detrás da mulher e tocando-lhe o ombro. Ela afetou curiosidade no leve arquear das sobrancelhas, um sonho? e recomeçou a espalhar o creme em torno dos olhos, preocupada demais com a própria beleza para pensar em qualquer coisa que não tivesse ligação com essa beleza. Que já está perdendo o viço, ele resmungou ao entrar no banheiro. Examinou-se no espelho: estava mais magro ou essa imagem era apenas um eco multiplicador do jardim?

Cumpriu a rotina da manhã com uma curiosidade comovida, atento aos menores gestos, os gestos que sempre repetiu automaticamente e que agora analisava, fragmentando-os em câmera lenta, como se fosse a primeira vez que abria uma torneira. Podia também ser a última. Fechou-a, mas que sentimento era esse? Despedia-se e estava chegando. Ligou o aparelho de barbear, examinou-o através do espelho e num movimento caricioso aproximou-o da face: não sabia que amava assim a vida. Essa vida da qual falava com tamanho sarcasmo, com tamanho desprezo. Acho que ainda não estou preparado, foi o que tentei dizer, não estou preparado. Seria uma morte repentina, coisa do coração – mas não é o que eu detesto? O imprevisto, a mudança dos planos. Enxugou-se com indulgente ironia: exatamente isso era o que todos diziam. Os que iam morrer. E nunca pensaram sequer em se preparar, até o avô velhíssimo, quase cem anos e alarmado com a chegada do padre, mas está na hora? Já?

Tomou o café em goles miúdos, como era gostoso o primeiro café. A manteiga se derretendo no pão aquecido. O perfume das maçãs de prazeres. Baixou o olhar para a mesa posta: os pequeninos objetos. Ao entregar-lhe o jornal, a mulher lembrou que tinham dois compromissos para a noite, um coquetel e um jantar, e se emendássemos? Ela sugeriu. Sim, emendar, ele disse. Mas não era o que faziam durante anos e anos, sem interrupção? O brilhante fio mundano era desenrolado infinitamente, dia após dia, sim, emendaremos, repetiu. E afastou o jornal: mais importante do que todos os jornais do mundo era agora o raio de sol entrando pela janela até respassar as uvas do prato. Colheu um bago cor de mel e pensou que se houvesse uma abelha no jardim do sonho, ao menos uma abelha, podia ter esperança. Olhou para a mulher que passava geléia de laranja na torrada, uma gota amarelo-ouro escorrendo-lhe pelo dedo e ela rindo e lambendo o dedo, há quanto tempo tinha acabado o amor? Ficara esse jogo. Essa acomodada representação já em decadência por desfastio, preguiça. Estendeu a mão para acariciar-lhe a cabeça, que pena, disse. Ela voltou-se, pena por quê? Ele demorou o olhar nos seus cabelos encaracolados, como os da estátua: uma pena aquele inseto, disse. E a perna ficar metálica na metamorfose final, não se importe, estou delirando. Serviu-se de mais café. Mas estremceu quando ela lhe perguntou se por acaso não estava atrasado.

último? Beijou o filho de uniforme azul, entretido em arrumar a pasta do colégio, exatamente como fizera na véspera. Como se não souvesse que naquela manhã (ou noite?) o pai quase olhara a morte nos olhos. Mais um pouco e dou de cara com ela, segredou ao menino que não ouviu, conversava com o copeiro. Se não acordo antes, disse num tom forte e a mulher se debruçou na jenala para avisar ao motorista que tirasse o carro. Vestiu o paletó: podia dizer o que quisesse, ninguém se interessava. E por acaso eu me interesso pelo que dizem ou fazem? Afagou o cachorro que veio saudá-lo com uma alegria tão cheia de saudade que se comoveu, não era extraordinário? A mulher, o filho, os empregados – todos continuavam impermeáveis, só o cachorro pressentira o perigo com seu faro visionário. Acendeu o cigarro, atento à chama do palito queimando até o fim. Vagamente, de algum cômodo da casa, veio a voz do locutor de rádio na previsão do tempo. Quando se levantou, a mulher e o filho já tinham saído. Ficou olhando o café esfriando no fundo da xícara. O beijo que lhe deram foi tão automático que nem sequer se lembrava de ter sido beijado.

Telefone para o senhor, o copeiro veio avisar. Encarou-o: há mais de três anos aquele homem trabalhava ali ao lado e quase nada sabia sobre ele. Baixou a cabeça, fez um gesto de quem se recusa e se desculpa. Tanta pressa nas relações dentro de casa. Lá fora, um empresário de sucesso casado com uma mulher na moda. A outra fora igualmente ambiciosa mas não tinha charme e era preciso charme para investir nas festas, nas roupas. Investir no corpo, a gente tem que se preparar como se todos os dias tivesse um encontro de amor, ela repetiu mais de uma vez, olha aí, não me distraio, nenhum sinal de barriga! A distração era de outro gênero. O doce distraimento de quem tem a vida pela frente, mas não tenho? Deixou cair o cigarro dentro da xícara: agora, não mais. O sonho interrompera o fluxo da sua vida no corte do jardim. O incrível sonho fluindo tão natural apesar da escada com seus degraus esburacados de tão gastos. Apesar dos passos do caçador embutido, pisando na areia da malícia fina até o toque no ombro: vamos?

Entrou no carro, ligou o contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recusando-se a obedecer. Repetiu o comando com mais energia e o pé resistindo. Tentou mais vezes. Não perder a calma, não se afobar, foi repetindo enquanto desligava a chave. Fechou o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse perfume de ervas úmidas? Descansou no assento as mãos desinteressadas. A paisagem foi se aproximando numa aura de cobre velho, estava clareando ou escurecia? Levantou a cabeça para o céu esverdinhado, com a lua de calva exposta, coroada de folhas. Vacilou na alameda bordejada pela folhagem escura, mas o que é isso, estou no jardim? De novo? E agora, acordado, espantou-se, examinando a gravata que ela escolhera para esse dia. Tocou na figueira, sim, outra vez a figueira. Enveredou pela alameda: um pouco mais e chegaria ao tanque seco. A moça dos pés cariados ainda estava em suspenso, sem se decidir, com medo de molhar os pés. Como ele mesmo, tanto cuidado em não se comprometer nunca, em não assumir a não ser as superfícies. Uma vela para Deus, outra para o Diabo. Sorriu das próprias mãos abertas, se oferecendo. Passei a vida asism, pensou, mergulhando-as nos bolsos num desesperado impulso de aprofundamento. Afastou-se antes que o inseto fofo irrompesse de dentro da pequenina orelha, não era absurdo? Isso da realidade imitar o sonho num jogo onde a memória se sujeitava ao planificado. Planificado por quem? Assobiou e o Cristo da procissão foi se esboçando no esquife indevassável, tão alto. A mãe enrolou-0 depressa no xale, a roupa do Senhor dos Passos era leve e tinha esfriado, está com frio, filho? Tudo se passava mais rápido ou era apenas impressão? A marcha funeral se precipitou em meio das tochas e correntes soprando fumaça e brasa. E se eu tivesse mais uma chance? gritou. Tarde porque o Cristo já ia longe.

O banco no centro do jardim. Afastou a teia despedaçada e entre os dedos musgosos como o banco, vislumbrou o corpo do antigo trapezista enredado nos fios da rede, só a perna viva. Fez-lhe um afago e a perna não reagiu. Sentiu o braço tombar, metálico, como era a alquimia? Se não fosse o chumbo derretido que lhe atingia o peito, sairia rodopiando pela alameda, descobri! Descobri. A alegria era quase insuportável: da primeira vez, escapei acordando. Agora, vou escapar dormindo. Não era simples? Recostou a cabeça no espaldar do banco, mas não era sutil? Enganar assim a morte saindo pela porta do sono. Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se.
Lygia Fagundes Telles

Gente boa e gente inútil

Conheci um rapaz que, há uns vinte anos, ganhou uma bolsa para estudar anatomia patológica nos EUA, e nunca mais voltou. Americanizou-se? Encantou-se? Ficou rico? Não, nada disso, mora numa cidadezinha gelada quase na fronteira do Canadá, tem um ordenado que lhe basta apenas para as despesas fundamentais, não se diverte, gasta os dias e boas horas da noite metido num laboratório. Foi incorporado aos pesquisadores de câncer. Notaram-lhe o talento, pediram-lhe que ficasse, ele ficou. Brilhante entre os mais brilhantes alunos que passaram pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, desistiu do futuro, largou tudo, fez-se anônimo e pobre, ingressou num claustro leigo, só deixando o seu trabalho para gemer um pouco de frio e saudade do Brasil, antes de dormir.

Homens como o Doutor Albert Schweitzer, capazes de trocar um destino artístico ou literário por um devotamento humanitário, são os santos de nosso tempo. A frieza de um laboratório, no entanto, ainda me parece um mundo mais estranho e árido do que a África Equatorial Francesa. Amar os homens por detrás de um microscópio, sem sentir nunca a reciprocidade do gesto generoso, é fantástico e humilhante para mim, tíbio comodista.

Os fatos são duros. Aperta-se o cerco contra o câncer nos EUA e em outros países. A conquista do espaço interplanetário não é tão emocionante quanto essa luta contra a morte. Antigamente, as epidemias chegavam de repente e dizimavam povos inteiros. As pestes modernas tomam aspecto moderno. As estatísticas sabem que 450 mil americanos serão vítimas do câncer este ano; destes, 260 mil estão condenados à morte. Sabe-se ainda, por exemplo, que no Norte dos EUA diminui a mortalidade por leucemia, mas no Sul a incidência mortal vem sendo acrescida. O mal é misterioso e aterroriza. Só não aterroriza o cientista escondido entre paredes assépticas (higienizadas), a isolar vírus, a traçar esquemas táticos, a vislumbrar esperanças, a chocar-se contra desilusões, a repetir, com o poeta, que cada nova tentativa é um fracasso diferente. É preciso usar nesta guerra  fala agora um cientista famoso  de todas as coisas que conquistaram mundos.

Admiro gente assim com a mais pura e selvagem simpatia de meu espírito.

Visitei há alguns anos o Instituto Pavlov, perto de Leningrado. Lá, em uma sala modesta e também fria, fui apresentado a um homem muito magro, desleixado no vestir, cabelos despenteados e de uma timidez de quem não tem o hábito de falar muito. Era um cientista famoso, chamava-se Victor Fiodorov. Pacientemente, ele me explicou a natureza das experiências que vinha realizando há longos anos, no sentido de tentar obter uma informação mais precisa sobre o câncer e a transmissão dos caracteres adquiridos. Contou-me com certa ternura a vida dos ratinhos assustados, detalhou-me suas idas e vindas, indutivas e dedutivas, pistas falsas, equívocos, surpresas repentinas, observações novas para a ciência, fez-me enfim um relatório completo daquilo que era a sua própria existência. Depois calou-se. Nesse ponto, naturalmente, ocorreu-me perguntar-lhe a que conclusão final chegara. O homem magro sorriu um sorriso decepcionado de criança que não ganhou presente, e respondeu-me: “Ainda não cheguei a qualquer conclusão; não há nada que me diga que eu haja contribuído para a cura do câncer”.

Quando cheguei lá fora, num silêncio agravado pela neve e pelo grito estrídulo (agudo) das gralhas no alto dos abetos (tipo de árvore), compreendi que não poderia esquecer aquele sorriso nunca mais. Não faço nada pelo bem de ninguém e, decerto, faço mal a algumas pessoas. Mas o sorriso do cientista Fiodorov, ao revelar-me a sua frustração ao longo de tantos anos de trabalho, pelo menos me acusa e não me deixa esquecer de que vim ao mundo causando dores e sem procurar diminuir a dor de ninguém. Um inútil. Resta-me a vaidade vulgar de saber que não presto para nada, pois o bonito entre os intelectuais de hoje é não ter compaixão da humanidade. Azar meu, que tenho, e nada faço.
Paulo Mendes Campos

domingo, agosto 27

Santo de todo dia

 


Abecedário

O A é uma letra com sótão. Chove sempre um pouco sobre o à craseado. O B é um l que se apaixonou por um 3. O b minúsculo é uma letra grávida. Ao C só lhe resta uma saída. O Ç cedilha, esse jamais tira a gravata. O D é um berimbau bíblico. O e minúsculo é uma letra esteatopigia (esteatopigia, ensino aos mais atrasadinhos, é uma pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e embaixo, muito feia). O E ri-se eternamente das outras letras. O F, com seu chapéu desabado sobre os olhos, é um gângster à espera de oportunidade. O f minúsculo é um poste antigo. A pontinha do G é que lhe dá esse ar desdenhoso. O g minúsculo é uma serpente de faquir. O H é uma letra dúplex. A parte de cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O h minúsculo é um dinossauro. O I maiúsculo guarda, em seu porte de letra, um pouco do número I romano. O i minúsculo é um bilboquê. O J, com seu gancho de pirata, rouba às vezes o lugar do g. O j minúsculo é uma foca brincando com sua bolinha. Vê-se nitidamente; o K é uma letra inacabada. Por enquanto só tem os andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto com o k minúsculo o K maiúsculo treina passo-de-ganso. O L maiúsculo parece um l que extraíram com a raiz e tudo. Mas o l minúsculo não consegue disfarçar que é um número (1) espionando o alfabeto. O M maiúsculo é um gráfico de uma firma instável. O m minúsculo é uma cadeia de montanhas. O N é um M perneta. No n minúsculo pode-se jogar críquete com a bolinha do o. O O maiúsculo boceja largamente diante da chatura das outras letras. O o minúsculo é um buraquinho no alfabeto. O p é um d plantando bananeira. Ou o q, vindo de volta. O Q maiúsculo anda sempre com o laço do sapato solto. O q minúsculo é um p se olhando de costas ao espelho. O R ficou assim de tanto praticar halterofilismo. Sente-se que o s é um cifrão fracassado. O S maiúsculo é um cisne orgulhoso. Na balança do T se faz jusTiça. O U é a ferradura do alfabeto, protegendo o galope das ideias. O u minúsculo é um n com as patinhas pro ar. O V é uma ponta de lança. O W são vês siameses. O X é uma encruzilhada. O Y é a taça onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente, de braços pra cima. O Z é o caminho mais curto, depois da bebida. O z minúsculo é um s cubista. 

(Esta composição gestaltiana levou anos, literalmente, para ser feita. Foi melhorando na medida em que o tempo – os anos, Deus meu! – foram passando. Publicada a primeira vez em 1985, na revista O Cruzeiro, foi reescrita para várias publicações. Não se consegue fazer esse tipo de coisa, mais ou menos perfeito, de uma sentada.)
Millôr Fernandes, "Millôr definitivo: Uma antologia de a Bíblia do Caos"

A conjura de sempre


Há no mundo uma conjura geral e permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes da ordem de perseguir a outra
Gustave Flaubert, "Correspondência"

Os tristes descaminhos

Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco - e pelo menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, porque o que é que adianta ver?

São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências - e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? - que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? - que esperança!

Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios - palha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.


Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?

No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?

São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? - que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.

Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.

Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.

Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.
Vinicius de Moraes, Jornal do Brasil (31/12/1969)

quinta-feira, agosto 24

Boletim de lembranças

Já marmanjo, na casa dos 30, Paulo Mendes Campos caiu em cima de um tesouro que o acaso devolvera a suas mãos seu diário aacute;rio de garoto, escrito em 1935, ao tempo em que, aluno da 2ª série do ginasial, ele vivia os rigores de um colégio interno – o temível Dom Bosco, dos padres salesianos, em Cachoeira do Campo, Minas Gerais. Era um pouco por castigo que ali estava, desde o ano anterior, por ter sido reprovado na 1ª série. Na áspera solidão do internato, lhe parecia estar – dirá ele na crônica “Quando voltei ao colégio” – o absurdo de expiar “crime futuro”.

O diário recuperado rendeu outra crônica, sem título, publicada em 1954 na coluna de PMC no Diário Carioca. Ao incluí-la em livro, bem mais tarde, batizou o texto (“Diário de um colegial”), mas o que aqui se pode ler, “O ano é de 1935...”, tem o charme da fisionomia original, no recorte do jornal que a estampou ainda quente.

Ao transcrever suas anotações de adolescente, o cronista fala em “ternura diante dessa criança já desconhecida”. Conta ter sido o autor do solitário gol – ou melhor, “goal” – numa partida entre os internos. Sobretudo conta os dias que faltam para “sair da gaiola”, à qual esteve confinado por três anos, e da qual saiu ferido para sempre. “A saudade à hora do crepúsculo estragou-me todos os outros crepúsculos”, lamentará ele no poema autobiográfico “Fragmentos em prosa”. Chegou, revela nesse poema, a levar tapa na cara. Ainda assim, esteve longe de poder dizer, como Ivan Lessa em “Ao professor, com pêsames”: “Todos os professores que eu tive desejavam a minha morte”.

Bem mais distendido era o panorama que esperava PMC no Ginásio Santo Antônio, de São João del Rei, para onde os pais o transferiram em 1937. Entre outros ganhos, ali veio a entabular uma de suas amizades de vida inteira, com Otto Lara Resende, nativo da cidade e aluno de outro colégio. Foi Paulo – credita Otto em “O jovem poeta setentão”, crônica de fevereiro de 1992, quando o amigo, falecido meses antes, estaria chegando a essa idade – quem lhe apresentou outra companhia para sempre: o uísque. Da marca White Horse, precisa ele.

Antônio Maria é outro que poderia ter guardado más lembranças de seu tempo de estudante, no Recife. “Menino só sabe que é feio, no colégio, quando o padre escolhe os que vão ajudar à missa”, ensina ele em “A mesa do café”. A cruel revelação lhe veio aos 7 anos, no Colégio Marista – mas o rejeitado deu de ombros: quais seriam, afinal, os limites entre a beleza e a feiura? Além do mais, a avaliação estética o livrou “dos tributos que teria de pagar, se fosse bonito, ajudando missa e saindo de anjo à frente das procissões”.

Quanto a Rachel de Queiroz, terá levado do Colégio Imaculada Conceição, no Ceará, poucas lembranças mais doces do que aquelas desfiadas na crônica “Ma Soeur”, dedicada a certa Irmã Maria. “Nunca a igreja militante contou com soldado mais entusiástico”, escreveu a ex-aluna. “Fez-se religiosa não por estático amor de Deus, mas por amor ativo; não por heroísmo”.

Já Rubem Braga, em “A minha glória literária”, não se sentiu motivado a nos contar quem foi o professor de português que, no Colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim, por duas vezes o cobriu de louros, na condição de autor da melhor composição da classe – e que na terceira o fez despencar do 10 ao 5, sob gargalhadas da turma, reduzindo a pó a glória literária do moleque Rubem Braga.

quarta-feira, agosto 23

Velho no porão


 

Abençado dia

Se domingo é mesmo o Dia do Senhor, tem-se mesmo que acreditar. Quando se abre a porta de casa para o jardim, nos galhos desnudos de um jasmim-manga, em um está um belo sabiá-laranjeira; no outro, o ouro de um sabiá.

Resta-nos apenas agradecer a visita dessas majestades mensageiras de vida.
Luiz Gadelha

Nos primórdios

Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam sapos. Brincavam de primo com prima. Tordo ensinava o brinquedo “primo com prima não faz mal: finca finca”. Não havia instrumento musical. Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo dos tempos.

Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos e os beira-corgos. Por fim o cavalo e o anta batizado.

Nem precisaram dizer crescei e multiplicai. Pois já se faziam filhos e piadas com muita animosidade.

Conhecimentos vinham por infusão pelo faro dos bugres pelos mascates.
O homem havia sido posto ali nos inícios para campear e hortar. Porém só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não hortava.

Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre e andeja. Enquanto que hortar prendia o ente no cabo da enxada. O que não era bom.

No começo contudo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas.

— O homem tinha mais o que não fazer!

Foi muito soberano mesmo no começo dos tempos este cortado. Burro não entrava em seus pastos. Só porque burro não pega perto.* Porém já hoje há quem trate os burros como cavalo. O que é uma distinção.
Manoel de Barros, "Meu quintal é maior do que o mundo"

* Burro não pega perto é expressão pantaneira. Nas lides de campear o pantaneiro usa o cavalo, que é veloz e alcança a rês desgarrada rapidamente.
O cavalo pega perto. Mas o burro, não sendo veloz, alcança longe a rês desgarrada. Por isso se diz que o burro não pega-perto. (N.A.)



O fantasma velho

Fantasmas não existem num plano ultraterreno, invulneráveis ao tempo. A prova disso pôde ser constatada na casa de D. Rigoberta Agra, na av. Floriano Peixoto, perto da catedral. É uma das primeiras mansões “art-nouveau” da cidade, construída na era opulenta do algodão. Ali morreu de uma febre, com três anos, o pequeno Gilbertinho – um golpe que abalou e finalmente dispersou a família. D. Rigoberta foi a primeira a avistá-lo, anos depois, brincando com soldadinhos invisíveis num canto do salão. Correu para abraçá-lo e desmaiou. As aparições se sucederam numa média de duas ou três por ano. A arrumadeira, D. Lígia, o avistou um dia entretido com um livro de Monteiro Lobato. Aprendera a ler sozinho. Viram-no depois de calção, chutando recursivamente uma bola de encontro à parede dos fundos. Nunca conseguiram aproximar-se dele, que desaparecia.

Foram rezados terços e novenas, foi aspergida água benta, mas D. Rigoberta afirmava que o menino era feliz; deixassem-no viver em paz os pedacinhos daquela vida que lhe coube. Gilbertinho continuou crescendo; em breve já era um rapaz, sentado pensativo sobre a balaustrada. Gostava de observar o ir e vir das pessoas rumo à esquina da Maciel Pinheiro, e não perdia o corso durante o carnaval. Jamais transpunha os limites da mansão, onde parecia residir a fonte oculta de força que o mantinha. D. Rigoberta faleceu, e à saída do féretro Gilberto, nessa época já de bigode, foi visto por trás da janela do segundo andar.

A casa ficou com outro neto, Valfredo, quando este casou com Silvana. Em algumas cartas ele mencionou que Gilberto agora dava preferência aos quartos de hóspedes, eternamente vazios, e opinou que a presença humana o incomodava. Percebeu também que Gilberto trajava roupas de acordo com o figurino do momento, e teorizou (gostava de ler teosofia, ocultismo) que a aparência física de um fantasma é criada por nós mesmos, com farrapos de memória, quando sentimos sua presença – que é necessariamente imaterial e invisível. “Gilberto está aqui, mas a imagem que percebemos só existe em nós, como as cores do arco-íris”, afirmou ele numa palestra que fez no Encontro Para a Nova Consciência.

Valfredo e Silvana envelheceram. Gilberto também. Nas últimas vezes tinha a barba toda branca e caminhava com dificuldade. De acordo com os registros da família, a última pessoa a avistá-lo foi a filha do casal, Thayssa, que o viu várias vezes cochilando sentado na grama do jadim, entre as flores. O mesmo lugar onde perdura hoje, principalmente ao anoitecer, uma luminosidade sem forma, pairando como um fogo-fátuo ou como o reflexo, numa vidraça distante, de um sol que já se pôs.
 

terça-feira, agosto 22

Leitura brasileira

 


Havia o nunca e o sim

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.

Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual – há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes. Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geleia trêmula. Será essa história um dia meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela – é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.

Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.

Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser mordenoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo.

História exterior e explícita, sim, mas que contém segredos – a começar por um dos títulos. “Quanto ao futuro”, que é precedido por um ponto final e seguido de outro ponto final. Não se trata de capricho meu – no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado. (Mal e mal vislumbro o final que, se minha pobreza permitir, quero que seja grandioso.) Se em vez de ponto fosse seguido por reticências o título ficaria aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até malsãs e sem piedade. Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal, a nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio, e não vós. Por tudo isto é que não vos dou a vez. Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos. O que é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.

Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – eu também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.

Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?

Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando as mãos uma na outra para ter coragem. Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava: o movimento é espírito. A reza era um meio de mudamente e escondido de todos atingir-me a mim mesmo. Quando rezava conseguia um oco de alma – e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter. Mais do que isso, nada. Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – meu mistério.

Clarice Lispector, "A hora da estrela"

A árvore e a fé

Diante do horror das decapitações e das demolições de monumentos arqueológicos, contemplo as árvores da chácara.

As árvores são o contrário dos fanáticos, que pregam uma só crença para todos, sob pena de morte, e com regulamentos de todo tipo para a vida. Não vestir isto, não comer aquilo, rezar assim-assim.

Enquanto isso, as árvores são fontes de vida e generosidade. Não dão apenas sementes, para reprodução, mas sementeiam e frutificam para os pássaros, os bichos, os humanos, como também dão folhas para a terra, flores para o vale, galhos para o vento, perfumes para a noite, oxigênio para o planeta.


Porque existiriam tantos frutos da terra se não fosse para todos serem comidos ou de alguma forma transformados? Porque existiriam tantos frutos do mar se não fosse para todos terem o direito de lutar pela vida? A vida não pode ser, além de uma luta, também uma festa em vez de apenas arena de sacrifícios?

A árvore não escolhe onde nasce, nem nós.

A árvore estará condenada a viver com mais ou menos sol e vento, em terra boa ou ruim, conforme onde germinar a semente. Também gente será católica, evangélica ou islâmica conforme o país e a família onde nascer, como também poderá mudar de crença quando crescer, ao contrário da árvore que é transformada em móveis ou lenha.
Se temos essa liberdade de mudar, não será por criação divina? Querer que todos tenham a mesma crença não será o mesmo que querer que todas as árvores sejam iguais? Como haveria frutos se só houvesse pinheiros?

A variedade é o fermento da democracia, como a uniformidade é o cimento do fanatismo. O fermento faz a massa crescer, o cimento é massa morta, condenado à erosão.

O democrata abraça e confraterniza, o fanático rejeita e agride. Um culto ecumênico é tão mais bonito quanto mais religiões congrega, do católico ao umbandista, do evangélico ao espírita, do budista ao ateu. Sim, o ateu consciente não só respeita como participa do ritual ecumênico, como o cacto participa do jardim e também dá flores e frutos.

Sim, Putin é o novo Hitler e o Estado Islâmico é o novo nazismo. Mas Mandela não morreu. Ghandi continua tecendo sua roca. Tenhamos fé no jardim da vida. A árvore da democracia tem apenas dois mil anos, e continua a crescer e se transformar. Os martelos, as foices, as picaretas e as bombas não vencerão, porque o destino humano é melhorar , tenhamos fé.

Boto o ponto final nesta crônica, olho pela janela e – surpresa – a laranjeira começou a florir! Vou lá cheirar o perfume, eis que onde enterrei lixo orgânico a seu pé, está brotando uma aboboreira. E a palmeira-real abriu seu cacho de flores brancas que virarão coquinhos vermelhos. Como não ter fé na vida e na sua variedade?

O livro e a criação do mundo

É verdade que os livros legitimaram acontecimentos terríveis, mas também sustentaram os melhores relatos, símbolos, saberes e invenções que a humanidade construiu no passado. Na Iliada contemplamos a lancinante aproximação entre um idoso e o assassino do seu filho; nos versos de Safo descobrimos que o desejo é uma forma de rebeldia; nas Histórias de Heródoto aprendemos a procurar a versão do outro; na Antígona vislumbramos a existência da lei internacional; em As Troianas enfrentamos a própria barbárie; numa epístola de Horácio encontramos a máxima "atreve-te a saber"; em A Arte de Amar de Ovídio fizemos um curso intensivo de prazer; nos livros de Tácito compreendemos a ditadura; e na voz de Séneca ouvimos um primeiro grito pacifista. Os livros legaram-nos algumas ideias dos nossos antepassados que não envelheceram muito mal: a igualdade entre os seres humanos , a possibilidade de escolher os nossos dirigentes, a intuição de que talvez as crianças estejam melhores na escola do que a trabalhar, a vontade de usar - e diminuir - o tesouro público para cuidar dos doentes , dos idosos e dos mais fracos. Todas estas invenções foram descobertas dos antigos, esses aos quais chamamos clássicos , e chegaram até nós por um caminho incerto. Sem os livros , as melhores coisas do nosso mundo teriam caído no esquecimento.

Irene Vallejo, "O Infinito num junco - A invenção do livro na Antiguidade e o nascer da sede de leitura"

segunda-feira, agosto 21

Na biblioteca...

 


O leão

A menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está preso, velho e doente, em gradil de ferro. Fui solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, que fossem lágrimas.

Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestígio - as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o leão tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se em pé.

Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer as gramas a seus pés.

Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

- Ele não tem dente?

- Tem sim, não vê? Não tem é força para morder.

Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.

O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina do fordeco antigo.

Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.
Dalton Trevisan

Aquele algo mais...


Se os livros pudessem ter mais, dar mais, ser mais, mostrar mais, ainda assim, eles precisariam de leitores para lhes trazer som e perfume e luz e todo o resto que não pode estar contido nos livros
Gary Paulsen

Como os pistoleiros do Velho Oeste

Leitores antigos têm certamente dezenas de histórias em que, como pistoleiros do Velho Oeste, andavam por toda parte os abomináveis sonetistas. Contra eles não havia defesa, legítima ou ilegítima. Ninguém, estivesse onde estivesse, podia considerar-se livre dos disparos de catorze fumegantes tiros, rimas ribombantes e perdigotos fatais.

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No dia 12, alguém pendurou uma placa no gradil do sobradinho: dá-se aulas de matemática. Na manhã seguinte, ao lado dela havia outra, colocada à noite por um vizinho sarcástico: precisa-se de professor de português.

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Até hoje as frases mais lindas, seja qual for seu autor, saem por aí molecas, jurando que são filhas de Clarice Lispector.

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Em mim alguma coisa se perdeu. Não uma dessas tolas, corriqueiras, daquelas mais useiras e vezeiras – mas a que definia que eu era eu.

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Do amor sou mau arquiteto. Por erros meus, ou o chão se abre em cratera ou então cai em ruínas o teto.

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Quando seu dia chegar, não fique impressionado, não se torne solene, não veja nisso um acontecimento incomum nem algum especial significado. Quando seu dia chegar, significará apenas que seu dia terá chegado.

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Isso é normal. Você deve continuar tentando. Um dia talvez alguém acredite que o que você vem fazendo há seis décadas merece o nome de literatura. Serão dois, então.

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Por mil razões você deve se conhecer. Uma delas é descobrir por que os outros são melhores.

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Posso dizer que sou autossuficiente em matéria de tristeza, mas nunca recuso abrigo a uma tristeza alheia.

O que se tornou Cândido entre os búlgaros

Cândido, expulso do paraíso terrestre, caminhou por muito tempo sem saber por onde, chorando, erguendo os olhos para o céu, voltando-os com frequência para o mais belo dos castelos que encerrava a mais bela das baronesinhas; dormiu sem jantar no meio dos campos, entre dois sulcos; a neve caía em grandes flocos. Cândido, transido de frio, arrastou-se no dia seguinte rumo à cidade vizinha, que se chama Valdberghoff-trarbk-dikdorff, sem dinheiro, morrendo de fome e de lassidão. Parou tristemente à porta de um cabaré. Dois homens vestidos de azul o notaram: “Camarada”, disse um deles, “aí está um jovem muito bem-apessoado e que tem o porte exigido”. Avançaram em direção a Cândido e lhe pediram que jantasse, com muita civilidade. “Meus senhores”, disse-lhes Cândido com uma modéstia encantadora, “fico muito honrado, mas não tenho com que pagar a minha parte.” “Ah! Meu senhor”, disse-lhe um dos azuis, “as pessoas de vosso porte e mérito nunca pagam nada: não tendes cinco pés e cinco polegadas de altura?” “Sim, senhores, é o meu porte”, disse ele, fazendo uma reverência. “Ah! Meu senhor, ponde-vos à mesa; não somente assumimos a despesa, mas nunca aceitaríamos que um homem como vós esteja sem dinheiro; os homens só são feitos para socorrer uns aos outros.” “Tendes razão”, disse Cândido, “é o que o senhor Pangloss sempre me disse, e bem vejo que tudo está pelo melhor.” Pedem-lhe que aceite alguns écus, ele aceita e quer fazer-lhes um comprovante da dívida; não querem nada disso, sentam-se à mesa: “Vós não amais com ternura?…”. “Oh! Sim”, respondeu ele, “amo com ternura a senhorita Cunegunda.” “Não”, disse um daqueles senhores, “estamos vos perguntando se não amais com ternura o rei dos búlgaros.” “Não, mesmo”, disse ele, “pois nunca o vi.” “Como! É o mais encantador de todos os reis, e temos de beber à sua saúde.” “Ah! Com muito gosto, meus senhores.” E ele bebe. “Basta”, dizem-lhe. “Eis que sois o apoio, o sustentáculo, o defensor, o herói dos búlgaros; vossa fortuna está feita e vossa glória está garantida.” Colocam-lhe imediatamente ferros nos pés e levam-no para o regimento. Fazem-no virar à direita, à esquerda, levantar a vareta, recolocar a vareta, mirar, atirar, dobrar o passo, e dão-lhe trinta bastonadas; no dia seguinte ele faz o exercício um pouco menos mal, e recebe apenas vinte pancadas; dois dias depois só lhe deram dez, e ele passa a ser visto por seus camaradas como um prodígio.

Cândido, completamente estupefato, não distinguia muito bem ainda como é que ele era um herói. Um belo dia de primavera ele teve a ideia de ir passear, caminhando direto para a frente, achando que era um privilégio da espécie humana, como da espécie animal, servir-se das pernas a seu bel-prazer. Mal andou duas léguas quando quatro outros heróis de seis pés o alcançam, amarram-no, levam-no para uma masmorra. Perguntaram-lhe juridicamente o que preferia: ser fustigado trinta e seis vezes por todo o regimento, ou receber ao mesmo tempo doze balas de chumbo no cérebro. Por mais que ele dissesse que as vontades são livres e que não queria nem uma coisa nem outra, foi preciso fazer uma escolha; ele decidiu-se, em virtude do dom de Deus a que se chama liberdade, a passar trinta e seis vezes pelas varas; aguentou dois passeios. O regimento era composto de dois mil homens: isso lhe valeu quatro mil varadas que, desde a nuca até o cu, puseram-lhe à mostra os músculos e os nervos. Como iam proceder à terceira rodada, Cândido, não aguentando mais, pediu como graça que aceitassem ter a bondade de quebrar-lhe a cabeça; ele obteve tal favor; vedam-lhe os olhos, fazem-no ajoelhar-se. O rei dos búlgaros passa nesse momento, informa-se sobre o crime do paciente; e, como esse rei tinha um grande gênio, compreendeu, por tudo o que ouviu de Cândido, que se tratava de um jovem metafísico, completamente ignorante das coisas deste mundo, e concedeu-lhe a sua graça com uma clemência que será louvada em todos os jornais e em todos os séculos. Um bom cirurgião curou Cândido em três semanas com os emolientes ensinados por Dioscórides. Já tinha um pouco de pele e podia andar quando o rei dos búlgaros travou batalha com o rei dos abares.

Voltaire, "Cândido ou o Otimismo"

sábado, agosto 19

Seleção para o fim de semana

 


Os livros representam a essência de um espírito

As obras são a quintessência de um espírito: por conseguinte, mesmo se este for o espírito mais sublime, elas sempre serão, sem comparação, mais ricas de conteúdo do que a sua companhia, e a substituirão também na essência – ou melhor, ultrapassá-la-ão em muito e a deixarão para trás: Até mesmo os escritos de uma cabeça medíocre podem ser instrutivos, dignos de leitura e divertidos, justamente porque são sua quintessência, o resultado, o fruto de
todo o seu pensamento e estudo; enquanto a sua companhia não nos consegue satisfazer. Sendo assim, podem-se ler livros de pessoas em cujas companhias não se encontraria nenhum prazer, e é por essa razão que uma cultura intelectual elevada nos induz pouco a pouco a encontrar o nosso prazer quase exclusivamente na leitura dos livros, e não na conversa com as pessoas.

Existem duas histórias: a política e a da literatura e da arte. A primeira é a história da vontade, a segunda, do intelecto. Por isso, a primeira é quase sempre alarmante, ou melhor, assustadora. Nela, o medo, a necessidade, o engano e terríveis assassinatos ocorrem em massa. A outra, ao contrário, é sempre agradável e serena, como o intelecto isolado, mesmo quando descreve erros. O seu ramo principal é a história da filosofia. Na verdade, esta constitui o seu baixo ideal, que se faz ouvir até mesmo na outra história e também conduz a opinião do seu fundamento até ela: mas esta última domina o mundo. Sendo assim, a filosofia, no sentido próprio e inequívoco, também é a mais fote potência material; contudo, age de forma muito lenta.
Arthur Schopenhauer

Ganhar o jogo

Quando não estou lendo um livro que apanho na biblioteca pública, fico vendo um dos programas da TV que mostram a vida dos ricos, os palácios deles, os automóveis, os cavalos, os iates, as joias, os quadros, os móveis raros, a baixela, a adega, a criadagem. É impressionante como os ricos são bem servidos. Não perco um desses programas, ainda que não me sejam de muita utilidade, a totalidade desses ricos não vive no meu país. Mas gostei de ouvir um milionário entrevistado durante o jantar dizer que adquiriu um iate no valor de centenas de milhões de dólares porque queria ter um iate maior do que o de um outro sujeito rico. “Era a única maneira de acabar com a inveja que eu sentia dele” confessou, sorrindo, dando um gole na bebida do seu copo. Os comensais à sua volta riram muito quando ouviram aquilo. Rico pode ter tudo, até inveja um do outro, e neles isso é engraçado, aliás tudo é divertido. Eu sou pobre e a inveja em pobre é muito malvista, porque inveja deixa pobre recalcado. Junto com a inveja, vem ódio dos ricos, pobre não sabe como ir à forra esportivamente, sem espírito de vingança. Mas eu não sinto raiva de nenhum rico, minha inveja é parecida com a do cara do iate maior: como ele, apenas quero ganhar o jogo.

Eu descobri como ganhar o jogo entre um sujeito pobre, como eu, e um rico. Não é me tornando rico, eu nunca conseguirei isso. “Ser rico” disse um deles num programa, “é uma propensão genética que nem todo mundo tem.” Esse milionário fizera sua fortuna saindo do zero. O meu pai era pobre, eu nada herdei quando ele morreu, nem o gene que motiva o cara a ganhar dinheiro.

O único bem que tenho é a minha vida, e a única maneira de ganhar o jogo é matar um rico e continuar vivo. É uma coisa parecida com comprar o iate maior. Sei que isso parece um raciocínio extravagante, mas uma forma de ganhar o jogo é criar pelo menos parte das regras, coisa que os ricos fazem. Esse rico que eu vou matar tem que ser um herdeiro, o herdeiro é uma pessoa como eu, sem disposição de ficar rico, mas que nasceu rico e goza fagueiro a fortuna que caiu do céu no seu colo. Para fruir bem a vida, aliás, é preferível que apenas o pai, e não o herdeiro, nasça com o tal gene.

Eu preferia matar um dos ricaços estrangeiros que vejo na televisão. Um homem. As mulheres deles, ou as suas filhas, são ainda mais ostensivamente ricas, porém uma mulher, por mais joias que tenha nos dedos e em volta do pulso e do pescoço, não é o iate maior. Também não me interessaria uma daquelas mulheres que obtiveram sua fortuna trabalhando, certamente portadora do tal gene, donas que aparecem na televisão vestidas de tailleur. Não, teria que ser um homem. Mas como esses homens ricos ideais vivem em outros países, tenho que procurar um rico aqui mesmo, um que herdou a grana e os bens de que desfruta.

A dificuldade para alcançar esse objetivo não me deixa nem um pouco preocupado. Traço meu plano cuidadosamente e, quando deito, alguns minutos depois estou dormindo e não acordo durante a noite. Não apenas tenho paz de espírito, mas uma próstata que funciona bem, ao contrário do meu pai, que levantava a cada três horas para urinar. Não tenho pressa, devo escolher com muito rigor, pelo menos igual ao do rico que comprou o iate grande. As pessoas que aparecem, em sua maioria, nas revistas publicadas aqui no meu país podem ser chamadas de ricas e famosas, mas matar uma figura dessas seria fácil, não me faria ganhar o jogo.

Todo rico gosta de ostentar sua riqueza. Os novos-ricos são mais exibidos, mas não quero matar um desses, quero um rico que herdou a sua fortuna. Esses, das gerações seguintes, são mais discretos, normalmente demonstram sua riqueza nas viagens, eles adoram fazer compras em Paris, Londres, Nova Iorque. Gostam também de ir a áreas distantes e exóticas, mas que possuam bons hotéis com serviçais gentis, e os mais esportistas não podem deixar de esquiar na neve uma vez por ano, o que é compreensível, afinal moram num país tropical. Exibem sua riqueza entre eles mesmos (não há vantagem em jogar com os pobres), nos jantares de milionários, onde o vencedor pode confessar que foi por inveja que comprou o que comprou, e os outros brindam alegremente à sua saúde.

Um sujeito como eu, branco, miserável, magro e famélico não tem irmãos nem aliados. Não foi fácil conseguir um emprego no mais caro e exclusivo bufê da cidade, precisei fazer demorados planos e manobras, levei dois anos nisso, perseverança é a única virtude que possuo. Os ricos costumavam contratar os serviços desse bufê quando ofereciam um jantar. A proprietária, descendente de uma família ilustre, não vou dizer o nome dela, não vou dizer o nome de ninguém, nem o meu, era uma mulher dominadora que mantinha suas anotações e cronogramas num pequeno computador que carregava numa bolsa a tiracolo. Impunha rígidos padrões aos que trabalhavam no bufê, cozinheiros, decoradores, compradores de mercadorias, garçons e os demais. Era tão competente que os seus empregados, além de obedecer sem piscar, ainda a admiravam. Se algum funcionário não se comportava conforme o modelo estabelecido, era mandado embora. Isso era raro, pois todos, antes de serem admitidos, eram submetidos a uma seleção e a um treinamento rigorosos. Fazíamos o que ela mandava, eu era um dos mais obedientes. E o bufê cobrava um dinheirão para cozinhar e alimentar os ricos. A dona do bufê tinha o tal gene.

Antes da avaliação e treinamento a que me submeti para ser garçom do tal bufê, fiz o meu próprio aprendizado. Primeiro, cuidei da minha aparência, arranjei um dentista barato e bom, o que é muito raro, e comprei roupas decentes. Depois, o que foi mais importante, aprendi, no meu adestramento solitário, a ser um servo feliz, como são os bons garçons. Mas fingir esses sentimentos é muito difícil. Essa subserviência e felicidade não podem ser óbvias, devem ser muito sutis, percebidas inconscientemente pelo destinatário. A melhor maneira de representar essa impalpável dissimulação era criar um estado de espírito que me fizesse realmente feliz por ser garçom dos ricos, ainda que provisoriamente. A dona do bufê me apontava como um exemplo de empregado que realizava o seu trabalho orgulhando-se do que fazia, por isso eu era tão eficiente.

Os ricos, como os pobres, não são todos iguais. Há os que gostam de parolar com um charuto caro entre os dedos ou com um copo de líquido precioso na mão, há os galanteadores, os que são reservados, os solenes, os que alardeiam erudição, os que exibem riqueza com seus paramentos de grife, há até os circunspectos, mas no fundo todos são faroleiros, faz parte da mímica. Que acaba sendo uma linguagem de sinais verdadeira, pois permite ver o que cada um realmente é. Sei que os pobres também fazem a sua mímica, mas os pobres não me interessam, não está nos meus planos jogar com nenhum deles, o meu jogo é o do iate maior.
Esperei pacientemente que o rico ideal surgisse para mim. Eu estava preparado para recebê-lo. Não foi fácil conseguir o veneno, insípido e inodoro, que eu transferia de um bolso para o outro em minha romaria. Mas não vou contar os riscos que corri e as torpezas que cometi para obtê-lo.

Afinal, um rico do tipo que eu tanto procurava apareceu num jantar de lugares marcados nas cinco mesas colocadas nas salas da mansão. Eu conhecia a sua história, mas nunca o vira, nem em retrato. Foi a dona do bufê que me disse, e pela primeira vez eu a vi alvoroçada, que “ele” acabara de chegar e que eu estava destacado para atendê-lo pessoalmente. Rico gosta de ser bem servido. Eu ficaria a certa distância, sem olhar para ele, mas todo gesto de comando que fizesse, por mais tênue que fosse, eu teria que me aproximar e simplesmente dizer, “senhor?” Eu sabia fazer isso muito bem, era um garçom feliz.

Ele chegara, como os outros convidados, num carro blindado, cercado de seguranças. Era um sujeito baixo, moreno, um pouco calvo, de gestos discretos. A mulher dele, a quarta, era uma loura alta e esbelta que parecia ainda mais comprida devido aos altos saltos dos sapatos que usava.

Havia oito comensais em cada mesa, quatro homens e quatro mulheres. Ainda que o serviço não fosse à francesa, cada mesa era atendida por dois garçons, o meu colega era um negro alto com dentes perfeitos. Havia bebidas para todas as preferências, até mesmo cerveja, mas não me lembro de alguém da minha mesa ter solicitado esse líquido vulgar e engordativo. Conforme as instruções da dona, o outro garçom estava subordinado a mim. Discretamente eu determinava que o meu colega atendesse aos pedidos dos demais comensais que, entretidos em suas conversas, nem percebiam o tratamento especial dispensado por mim a um deles.
Atendi-o com perfeição. Ele comia pouco, bebia sem se exceder. Não usava, comigo, as palavras “por favor” nem “obrigado” Suas ordens eram lacônicas, sem afetação. O jantar se aproximava do fim.

“Senhor?” eu me aproximei quando ele virou o rosto dois centímetros para o lado, sem olhar para ninguém, mas eu sabia que era para mim.

“Um curto.”

Era a oportunidade que eu esperava.

Fui à cozinha, eu mesmo preparei o café na máquina italiana de último tipo fornecida pelo bufê. Coloquei o veneno dentro.

“Aqui está, senhor.”

Ele sorveu o café conversando com sua vizinha. Sem pressa, peguei a xícara vazia, voltei à cozinha e lavei-a com esmero.

Demorou algum tempo até descobrirem que estava morto, pois ele havia pousado a cabeça sobre os braços apoiados na mesa e parecia estar dormindo. Mas como milionário não faz uma coisa dessas, tirar uma soneca numa mesa de banquete, os circunstantes acabaram estranhando e percebendo que alguma coisa grave ocorrera. Um colapso circulatório, provavelmente.

Foi uma comoção, enfrentada com relativa elegância pela maioria dos presentes, principalmente pela esguia mulher dele. Os seguranças, porém, ficaram muito nervosos. O jantar foi encerrado pouco depois que uma ambulância particular levou o corpo.

Creio que vou continuar por mais algum tempo servindo aos ricos. Terá que ser em outro bufê, aquele onde eu trabalhava caiu em desgraça. Os jornais no início noticiaram apenas que a causa mortis do ricaço fora um mal súbito. Porém uma dessas revistas semanais publicou uma enorme matéria de capa falando em envenenamento, com retratos dos participantes do banquete, principalmente daqueles, homens e mulheres, sobre quem pudesse ser feita uma insinuação maldosa. A vida do milionário morto, seus negócios, seus vários casamentos e separações, principalmente as circunstâncias escandalosas de uma delas, receberam extensa cobertura.

A polícia está investigando. Gostei de ir depor na delegacia. Não demorei muito lá, a polícia achava que eu não tinha muito a dizer sobre o envenenamento, afinal eu era um garçom burro e feliz, acima de qualquer suspeita. Quando fui dispensado pelo delegado encarregado do caso, eu disse de maneira casual.

“Meu iate é maior do que o dele.”

Alguém precisava saber.

“Já disse que está dispensado, pode se retirar.”

Quando estava saindo, ouvi o delegado dizer para o escrivão: “Mais um depoimento de merda.”

Ganhei o jogo. Estou na dúvida se jogo mais uma vez. Com inveja, mas sem ressentimentos, apenas para ganhar, como os ricos. É bom ser como os ricos.
Rubem Fonseca, "Pequenas Criaturas"