quarta-feira, agosto 9

Abandono

A gente morava na última casa de uma rua. Depois
o mato começava. Dois trilheiros entravam pelo
mato. Um trilheiro dava no rancho de Nhá Velina
Cuê que comia feijão com arara, quati com abóbora
e cobra com mandioca. O outro trilheiro esbarrava
no rio. Os meninos brincavam nus no rio entre
pássaros. Tinha um Bolivianinho, boliviano pé
de pano entre os guris. E um Gonçalo pé de galo
orelha de meu cavalo. Acho que o pé de pano do
boliviano era só para trovar. Assim como o pé de
galo do Gonçalo. Descobri nesse tempo que os
apelidos pregam mais quando trovam. Depois descobri
naquele lugar a palavra abandono. A palavra funcionava
dentro e fora das pessoas. Eu não sabia se era o
lugar que transmitia o abandono às pessoas ou se
eram elas que transmitiam o abandono ao lugar. Eu
conhecia a palavra só de nome. Mas não conhecia
o lugar que pegava abandono. Por antes a força da
palavra é que me dava a noção. Mas em vista do
que vi o olhar reforça a palavra. O olhar segura
a palavra na gente. O cheiro e o amor do lugar
também participam. Todos os seres daquele lugar
me pareciam perdidos na terra, bem esquecidos como
um lápis numa península. Mas Nhá Velina Cuê me
falou: este abandono me protege. Acho que esse
paradoxo reforça mais a poesia do que a verdade.

Manoel de Barros, "Memórias Inventadas – A segunda infância"

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