A quinhentos metros, os vossos belos olhos desaparecem; e essa claridade do vosso rosto; e a fascinação da vossa palavra. É uma pena (eu também acho que é uma pena!), mas, a quinhentos metros, tudo se torna muito reduzido: sois uma pequena figura sem pormenores; vossas amáveis singularidades fundem-se numa sombra neutra e vulgar. Ao longe, caminhais como qualquer pessoa – e até como certas aves: é o que resta de vós: esse ritmo, na imensa estrada que também se vai projetando, estreita e indistinta, sobre o horizonte.
Bem sei que tendes muitas inquietações: há um mês de maio na vossa memória, e um campo em flor, e um arroio que cantava numas pedrinhas, e depois muitas, muitas cidades grandiosas e indiferentes, e teatros acesos, ramos de flores, ceias, risos, vozes, adereços de turquesa, – bem sei, bem sei. Bem sei que tudo isso ficou a mais de quinhentos metros, e ainda de longe continuais a sofrer. Mas, para quem vos olha a uma distância de quinhentos metros, essas dimensões que levais convosco deixam de existir. As canções que aprendestes e a dor que sabeis, nada se avista daqui. Sois uma sombra muito pequenina, prestes a perder mesmo o ritmo do passo, a parecer parada como o próprio chão. Podereis ir para um lado ou para o outro: daqui a pouco nem saberemos para onde fostes: e as vossas decisões estarão fora do nosso alcance, como vós estareis fora da nossa vista.
É bem triste tudo isso, porque nós vos amamos, e gostaríamos de responder, se por acaso nos chamásseis: mas, a quinhentos metros, é bem difícil ouvirmos a vossa voz. Mandamos pelo ar nossos bons pensamentos: mas, que acontece aos pensamentos, mesmo aos melhores, desde que partem, desde que se desprendem de nós? Onde vão pousar os nossos bons pensamentos? E as pessoas a quem os dirigimos serão exatamente aquelas que os encontram?
Tenho muita pena de tudo isso: mas a pena vai ficando também menor, cada vez menor, à medida que avançais para longe: o sofrimento acompanha seu dono; nós apenas o vemos, e algumas vezes o compreendemos, sem, no entanto, o podermos tomar para nós, desfazê-lo ou dar-lhe outra direção. E ele também vai ficando pequenino, diminuindo, com a distância, para nós que não o carregamos, que apenas ouvimos dizer que existe. É como, nos mapas, o desenho de um rio que jamais encontramos: é certo que passa por ali, mas não sabemos nada de suas histórias, reflexos e ecos.
A quinhentos metros, na verdade, há muita ausência, vamos acabando muito depressa. Pensai que, geralmente, neste mundo, há sempre cerca de quinhentos metros de uma pessoa para outra! Somos só desaparecimento. E apenas quando conseguimos ficar, também, a quinhentos metros de nós mesmos, encontramos algum sossego. Porque, então, é a vez dos nossos tormentos mudarem de proporções e aspecto. De serem vistos só de longe, sem pormenores, sem voz, sem ritmo: nem mês de maio, nem flores, nem arroio. Talvez a memória serenada. Talvez nem a memória… – É assim em quinhentos metros!
Cecília Meireles, "Quadrante 1"
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