Conheci um rapaz que, há uns vinte anos, ganhou uma bolsa para estudar anatomia patológica nos EUA, e nunca mais voltou. Americanizou-se? Encantou-se? Ficou rico? Não, nada disso, mora numa cidadezinha gelada quase na fronteira do Canadá, tem um ordenado que lhe basta apenas para as despesas fundamentais, não se diverte, gasta os dias e boas horas da noite metido num laboratório. Foi incorporado aos pesquisadores de câncer. Notaram-lhe o talento, pediram-lhe que ficasse, ele ficou. Brilhante entre os mais brilhantes alunos que passaram pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, desistiu do futuro, largou tudo, fez-se anônimo e pobre, ingressou num claustro leigo, só deixando o seu trabalho para gemer um pouco de frio e saudade do Brasil, antes de dormir.
Homens como o Doutor Albert Schweitzer, capazes de trocar um destino artístico ou literário por um devotamento humanitário, são os santos de nosso tempo. A frieza de um laboratório, no entanto, ainda me parece um mundo mais estranho e árido do que a África Equatorial Francesa. Amar os homens por detrás de um microscópio, sem sentir nunca a reciprocidade do gesto generoso, é fantástico e humilhante para mim, tíbio comodista.
Os fatos são duros. Aperta-se o cerco contra o câncer nos EUA e em outros países. A conquista do espaço interplanetário não é tão emocionante quanto essa luta contra a morte. Antigamente, as epidemias chegavam de repente e dizimavam povos inteiros. As pestes modernas tomam aspecto moderno. As estatísticas sabem que 450 mil americanos serão vítimas do câncer este ano; destes, 260 mil estão condenados à morte. Sabe-se ainda, por exemplo, que no Norte dos EUA diminui a mortalidade por leucemia, mas no Sul a incidência mortal vem sendo acrescida. O mal é misterioso e aterroriza. Só não aterroriza o cientista escondido entre paredes assépticas (higienizadas), a isolar vírus, a traçar esquemas táticos, a vislumbrar esperanças, a chocar-se contra desilusões, a repetir, com o poeta, que cada nova tentativa é um fracasso diferente. É preciso usar nesta guerra fala agora um cientista famoso de todas as coisas que conquistaram mundos.
Admiro gente assim com a mais pura e selvagem simpatia de meu espírito.
Visitei há alguns anos o Instituto Pavlov, perto de Leningrado. Lá, em uma sala modesta e também fria, fui apresentado a um homem muito magro, desleixado no vestir, cabelos despenteados e de uma timidez de quem não tem o hábito de falar muito. Era um cientista famoso, chamava-se Victor Fiodorov. Pacientemente, ele me explicou a natureza das experiências que vinha realizando há longos anos, no sentido de tentar obter uma informação mais precisa sobre o câncer e a transmissão dos caracteres adquiridos. Contou-me com certa ternura a vida dos ratinhos assustados, detalhou-me suas idas e vindas, indutivas e dedutivas, pistas falsas, equívocos, surpresas repentinas, observações novas para a ciência, fez-me enfim um relatório completo daquilo que era a sua própria existência. Depois calou-se. Nesse ponto, naturalmente, ocorreu-me perguntar-lhe a que conclusão final chegara. O homem magro sorriu um sorriso decepcionado de criança que não ganhou presente, e respondeu-me: “Ainda não cheguei a qualquer conclusão; não há nada que me diga que eu haja contribuído para a cura do câncer”.
Quando cheguei lá fora, num silêncio agravado pela neve e pelo grito estrídulo (agudo) das gralhas no alto dos abetos (tipo de árvore), compreendi que não poderia esquecer aquele sorriso nunca mais. Não faço nada pelo bem de ninguém e, decerto, faço mal a algumas pessoas. Mas o sorriso do cientista Fiodorov, ao revelar-me a sua frustração ao longo de tantos anos de trabalho, pelo menos me acusa e não me deixa esquecer de que vim ao mundo causando dores e sem procurar diminuir a dor de ninguém. Um inútil. Resta-me a vaidade vulgar de saber que não presto para nada, pois o bonito entre os intelectuais de hoje é não ter compaixão da humanidade. Azar meu, que tenho, e nada faço.
Paulo Mendes Campos
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