sexta-feira, agosto 18

O pressuposto indispensável para ser um Grande-Escritor

O pressuposto indispensável para se ser um grande-escritor é, então, o de escrever livros e peças de teatro que sirvam para todos os níveis, do mais alto ao mais baixo. Antes de produzir algum bom efeito, é preciso primeiro produzir efeito: este princípio é a base de toda a existência como grande-escritor. É um princípio miraculoso, eficaz contra todas as tentações da solidão, por excelência o princípio goethiano do sucesso: se nos movermos apenas num mundo que nos é propício, tudo o resto virá por si. Pois quando um escritor começa a ter sucesso dá-se logo uma transformação significativa na sua vida. O seu editor para de se lamentar e de dizer que um comerciante que se torna editor se parece com um idealista trágico, porque faria muito mais dinheiro negociando com tecidos ou papel virgem. A crítica descobre nele um objeto digno da sua atividade, porque os críticos muitas vezes até nem são más pessoas, mas, dadas as circunstâncias epocais pouco propícias, ex-poetas que precisam de um apoio do coração para poderem pôr cá fora os seus sentimentos; são poetas do amor ou da guerra, consoante o capital interior que têm de aplicar com proveito, e por isso é perfeitamente compreensível que escolham o livro de um grande-escritor e não o de um comum escritor. Acontece que uma pessoa tem uma capacidade de trabalho limitada, que os seus melhores resultados se aplicam com facilidade às novidades saídas anualmente da pena dos grandes-escritores, que assim se transformam em caixas-económicas da prosperidade intelectual da nação, na medida em que cada um deles arrasta consigo interpretações que não se limitam a ser explicações, são antes aplicações, e para o resto dos livros pouco sobra. Mas a coisa só alcança proporções verdadeiramente grandes pela mão dos ensaístas, dos biógrafos e dos historiadores instantâneos, que se servem dos homens grandes para descarregar as suas necessidades. Com o devido respeito, até os cães preferem para as suas necessidades mais comuns uma esquina movimentada a uma pedra solitária. Por que razão hão-de então os homens que sentem o nobre impulso de legar o nome à posteridade escolher uma pedra manifestamente solitária?


Quando dá por si, o grande-escritor já não é um ser com autonomia, viu-se transformado numa simbiose, no resultado de um grupo de trabalho à escala nacional, no mais dedicado e delicado sentido, beneficiando da mais bela certeza que a vida lhe pode conceder: a de que o seu êxito está intimamente ligado ao de inúmeros outros homens.

Provavelmente é essa a explicação para um dos traços mais comuns do carácter de um grande-escritor: um marcado sentido do bom comportamento. Só recorrem à escrita combativa quando sentem o seu prestígio ameaçado; em todos os outros casos o seu comportamento distingue-se pelo equilíbrio e pela benevolência. São sempre tolerantes para com as ninharias que se dizem em seu louvor. Não se rebaixam facilmente a escrever sobre outros autores; quando o fazem, raramente é para elogiar um homem superior, mas quase sempre para animar um daqueles talentos apagados que se compõem de quarenta e nove por cento de talento e cinquenta e um por cento de ausência dele, e, devido a esta composição, se ajustam a todas as situações em que é precisa alguma força, mas um homem forte poderia ser prejudicial; e a curto ou a longo prazo todos eles terão um lugar influente na vida literária.

O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade exclamamos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: «É uma besta! É um maroto!» Para exclamar: «É um génio!» ou «É um santo!», oferecemos naturalmente mais resistência. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz.

Não há maior refrigério para o espírito do que a leitura dos clássicos antigos: tão logo temos um deles nas mãos, e mesmo que seja por apenas meia hora, sentimo-nos imediatamente refrescados, aliviados, purificados, elevados e fortalecidos; como se nos tivéssemos deleitado na fonte fresca de uma rocha. Tal facto depende das línguas antigas e da sua perfeição ou da grandeza dos espíritos, cujas obras permanecem intactas e vigorosas pelos milénios? Talvez de ambos. Mas sei que, se algum dia o estudo das línguas antigas cessar, como ameaça cessar agora, surgirá então uma nova literatura, feita de escrevinhações bárbaras, triviais e indignas, como ainda não chegou a existir; tanto mais que a língua alemã, que realmente possui algumas das perfeições das línguas antigas, é delapidada e mutilada com zelo e método pelos rabiscadores da época «actual», de modo que, pouco a pouco, ela se empobrece e degenera, transformando-se num jargão miserável.
Robert Musil

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