Quando dá por si, o grande-escritor já não é um ser com autonomia, viu-se transformado numa simbiose, no resultado de um grupo de trabalho à escala nacional, no mais dedicado e delicado sentido, beneficiando da mais bela certeza que a vida lhe pode conceder: a de que o seu êxito está intimamente ligado ao de inúmeros outros homens.
Provavelmente é essa a explicação para um dos traços mais comuns do carácter de um grande-escritor: um marcado sentido do bom comportamento. Só recorrem à escrita combativa quando sentem o seu prestígio ameaçado; em todos os outros casos o seu comportamento distingue-se pelo equilíbrio e pela benevolência. São sempre tolerantes para com as ninharias que se dizem em seu louvor. Não se rebaixam facilmente a escrever sobre outros autores; quando o fazem, raramente é para elogiar um homem superior, mas quase sempre para animar um daqueles talentos apagados que se compõem de quarenta e nove por cento de talento e cinquenta e um por cento de ausência dele, e, devido a esta composição, se ajustam a todas as situações em que é precisa alguma força, mas um homem forte poderia ser prejudicial; e a curto ou a longo prazo todos eles terão um lugar influente na vida literária.
O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade exclamamos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: «É uma besta! É um maroto!» Para exclamar: «É um génio!» ou «É um santo!», oferecemos naturalmente mais resistência. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz.
Não há maior refrigério para o espírito do que a leitura dos clássicos antigos: tão logo temos um deles nas mãos, e mesmo que seja por apenas meia hora, sentimo-nos imediatamente refrescados, aliviados, purificados, elevados e fortalecidos; como se nos tivéssemos deleitado na fonte fresca de uma rocha. Tal facto depende das línguas antigas e da sua perfeição ou da grandeza dos espíritos, cujas obras permanecem intactas e vigorosas pelos milénios? Talvez de ambos. Mas sei que, se algum dia o estudo das línguas antigas cessar, como ameaça cessar agora, surgirá então uma nova literatura, feita de escrevinhações bárbaras, triviais e indignas, como ainda não chegou a existir; tanto mais que a língua alemã, que realmente possui algumas das perfeições das línguas antigas, é delapidada e mutilada com zelo e método pelos rabiscadores da época «actual», de modo que, pouco a pouco, ela se empobrece e degenera, transformando-se num jargão miserável.
Robert Musil
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