quarta-feira, agosto 16

Palavras

Quando eu era criança, tive uma professora de piano que tentava estimular seus alunos pouco inspirados com um sistema de recompensas. Memorizar uma sonatina de Clementini ou terminar um caderno de exercícios valia-nos certo número de estrelas que se somavam para o grande prêmio: um pequeno busto de gesso, não pintado, de um compositor famoso: Bach, Beethoven, Mozart.

A ideia, suponho, era que alinhássemos as estatuetas sobre o piano numa espécie de altar, ao qual ofereceríamos nossos exercícios na débil esperança de ganhar a aprovação daqueles mortos. Eu era fascinada por suas perucas empoadas e suas expressões severas – ou sonhadoras, no caso de Chopin. Eles eram como bonecas brancas, sem corpo, que eu não podia pensar em vestir.

Infelizmente para a minha professora de piano e para mim, eu não me importava muito em granjear as boas opiniões dos compositores mortos, talvez por já saber que nunca o conseguiria.

Eu tinha meu próprio panteão privado, composto não por compositores, mas por escritores: P.L. Travers, Astrid Lindgren, E. Nesbit, os ídolos de minha infância. Era pela aprovação, pela companhia deles que eu ansiava enquanto flutuavam acima de mim, dando-me alguma coisa em que pensar durante aquelas enfadonhas sessões de exercícios ao piano. Nos anos transcorridos desde então, a composição de meu panteão literário mudou. Mas não perdi a imagem de Tolstoi ou George Eliot fazendo um aceno de aprovação ou franzindo a sobrancelha diante do meu trabalho, virando o polegar para cima ou para baixo.

Ouvi outros escritores falarem sobre a sensação de escrever para um público composto parcialmente por mortos. Em suas memórias, Hope against Hope, Nadezhda Mandelstam descreve como seu marido, Osip, e sua amiga Anna Akhmatova, também poeta, participavam de uma espécie de comunhão sobrenatural com seus predecessores:

M. e Akhmatova tinham ambos a assombrosa capacidade de transpor de algum modo o tempo e o espaço quando liam a obra de poetas mortos. Por sua própria natureza, essa leitura é geralmente anacrônica, mas com eles significava entrar num mundo de relações pessoais com o poeta em questão: era uma espécie de conversa com alguém que há muito se fora. Pelo modo como ele saudou seus companheiros poetas da Antiguidade no Inferno, M. suspeitava que Dante também tinha essa capacidade. Em seu artigo “On the nature of words”, ele menciona a busca de Bergson por vínculos entre coisas do mesmo tipo, separadas unicamente pelo tempo – do mesmo modo, pensava ele, podemos procurar amigos e aliados através das barreiras tanto do espaço quanto do tempo. Isso provavelmente havia sido compreendido por Keats, que tinha o desejo de encontrar todos os amigos, vivos e mortos, numa taberna.

Akhmatova, ao ressuscitar figuras do passado, estava sempre interessada no modo como viviam e em suas relações com os outros. Lembro como fez Shelley reviver para mim – esse foi, por assim dizer, seu primeiro experimento do gênero. Em seguida iniciou-se seu período de comunhão com Pushkin. Com a minuciosidade de um detetive ou de uma mulher ciumenta, ela deslindou tudo sobre as pessoas que o cercavam, sondando seus motivos psicológicos e virando pelo avesso, como uma luva, cada mulher para quem ele havia sorrido.

Quais são então os escritores com quem poderíamos desejar ter esse tipo de comunhão atemporal? As irmãs Brontë, Dickens, Turguêniev, Woolf – a lista é longa o bastante para garantir leitura sólida por uma vida inteira. Podemos dar por certo que, se a obra de um escritor sobreviveu ao longo de séculos, há razões para isso, explicações que nada têm a ver com uma conspiração de acadêmicos tramando para ressuscitar um exército zumbi de homens brancos mortos. Há, é claro, a questão do gosto individual. Pode ser que nem todos os grandes escritores pareçam grandes para nós, não importa a frequência e a intensidade com que tentemos ver suas virtudes. Sei, por exemplo, que Trollope é considerado um brilhante romancista, mas nunca compreendi muito bem o que torna seus fãs tão ardorosos. Entretanto, nossos gostos mudam à medida que nós mesmos mudamos e envelhecemos, e é possível que dentro de alguns meses Trollope tenha se tornado meu novo escritor favorito.

Parte da obrigação do leitor é descobrir por que certos escritores permanecem. Isso pode exigir alguma reconexão: desfazer a conexão que nos faz pensar que devemos ter uma opinião sobre o livro e reconectar esse fio ao terminal, seja ele qual for, que nos permite ver a leitura como algo capaz de nos comover ou deliciar. Faremos um desserviço a nós mesmos se limitarmos nossa leitura à estrela ascendente cujo contrato de seis dígitos por dois livros parece indicar para onde nosso próprio trabalho deveria estar avançando. Não estou dizendo que você não deveria ler esses autores, alguns dos quais são excelentes e merecedores de celebridade. Só estou salientando que eles representam o ponto final da longa, gloriosa e complexa frase em que a literatura foi escrita.

Com tanta leitura à sua frente, a tentação poderia ser aumentar a velocidade. Mas na verdade é essencial desacelerar e ler cada palavra. Porque algo importante que se pode aprender lendo devagar é o fato óbvio, mas estranhamente subestimado, de que a linguagem é o meio que usamos, mais ou menos como um compositor usa notas, como um pintor usa tinta. Compreendo que isso pode parecer óbvio, mas é surpreendente a facilidade com que perdemos de vista o fato de que as palavras são a matéria-prima com que a literatura é construída.

Cada página foi antes uma página em branco, assim como cada palavra que aparece nela agora não esteve sempre ali – antes, reflete o resultado final de incontáveis deliberações, grandes e pequenas. Todos os elementos da boa escrita dependem da habilidade do escritor de escolher uma palavra em vez de outra. E o que prende e mantém nosso interesse tem tudo a ver com essas escolhas.

Uma maneira de você se obrigar a desacelerar e parar a cada palavra é perguntar-se que tipo de informação cada uma – cada escolha de palavra – transmite. Lendo com essa pergunta em mente, consideremos a riqueza de informação fornecida pelo primeiro parágrafo de “A good man is hard to find”, de Flannery O’Connor.

A avó não queria ir para a Flórida. Queria visitar alguns de seus contatos no leste do Tennessee e agarrava-se a todas as chances para fazer Bailey mudar de ideia. Bailey era o filho com que morava, seu único menino. Ele estava sentado na ponta de sua cadeira à mesa, curvado sobre a seção esportiva laranja do Journal. “Ora, olhe aqui, Bailey”, disse ela, “veja aqui, leia isto”, e parou, uma mão nas cadeiras magras e a outra sacudindo o jornal junto à cabeça calva dele. “Este sujeito aqui que chama a si próprio de O Desajustado fugiu da Penitenciária Federal e tomou o rumo da Flórida, e leia aqui o que ele diz que fez com essas pessoas. Dê só uma lida nisto. Eu não levaria meus filhos a parte alguma com um criminoso como esse tresmalhado por lá. Não ficaria em paz com a minha consciência se levasse.”

A primeira frase declarativa simples dificilmente poderia ser mais direta: sujeito, verbo, infinitivo, preposição. Não há um adjetivo ou advérbio para nos distrair do fato central. Mas quanta coisa está contida nessas oito pequenas palavras!

Aqui, como nas aberturas de muitos contos e romances, somos confrontados com uma escolha importante que um escritor de ficção precisa fazer: a questão de como chamar seus personagens. Joe, Joe Smith, sr. Smith? Não, neste caso, Vovó, ou Vovó Smith (ninguém nesta história tem sobrenome), ou, digamos, Ethel, ou Ethel Smith, ou sra. Smith, ou qualquer da miríade de termos ou designações que poderiam ter estabelecido diferentes graus de distância psíquica e simpatia entre o leitor e a velha.

Chamá-la de “a avó” a reduz imediatamente a seu papel na família, tal como o fato de que sua nora nunca é chamada de outra coisa senão “a mãe das crianças”. Ao mesmo tempo, o título dá a ela (como ao Desajustado) um papel arquetípico, mítico, que a eleva e impede que fiquemos íntimos demais dessa mulher cujo nome nunca chegamos a saber, ainda que o escritor esteja preparando nossos corações para se partirem no momento crítico para o qual toda a sua vida e os eventos do conto a levaram.

“A avó não queria ir para a Flórida.” A primeira frase é uma negativa, que, em sua própria simplicidade, enfatiza a força com que a velha está resistindo. É um ato concentrado de vontade negativa, que viremos a compreender em toda a sua trágica insensatez – isto é, o absurdo de tentar exercer a própria vontade quando o fado ou o destino (ou, como O’Connor alegaria, Deus) têm outros planos para nós. E, finalmente, a austeridade terra-a-terra da construção da frase confere-lhe um tipo de autoridade que – como a primeira frase de Moby Dick, “Chame-me Ishmael” – nos faz sentir que o autor está no controle, uma autoridade que nos arrasta para diante na história.

A primeira parte da segunda frase – “Queria visitar alguns de seus contatos no leste do Tennessee” – nos situa na geografia, isto é, no sul dos Estados Unidos. E essa única palavra, contatos (em contraposição a parentes, familiares ou gente), revela a consciência que a avó tem de sua própria fidalguia decaída, de ter perdido sua posição social, uma autoimagem um tanto enganosa que, como as ilusões de muitos outros personagens de O’Connor, contribuirá para a sua ruína.

A segunda metade da frase – “agarrava-se a todas as chances para fazer Bailey mudar de ideia” – agarra nossa própria atenção com mais força do que o faria se O’Connor tivesse escrito, digamos, “aproveitando todas as chances”. O verbo revela de maneira tranquila, mas sucinta, tanto a veemência da avó quanto a passividade de Bailey, “o filho com que morava, seu único menino”, duas expressões que transmitem a situação doméstica dos dois, bem como a dominância que infantiliza o filho e a ternura simultânea que a avó sente por ele. Essa palavra menino assumirá uma ressonância trágica mais tarde. “Menino Bailey!”, a velha gritará depois que seu filho for morto pelo Desajustado, que já está prestes a fazer sua aparição no jornal que a avó está “sacudindo” junto à cabeça calva de seu garoto. Nesse meio tempo, o paradoxo de um menino calvo, presumivelmente de meia-idade, leva-nos a tirar certas conclusões precisas sobre a constelação familiar.

O Desajustado está “tresmalhado” – aqui encontramos uma dessas palavras com que O’Connor transmite o ritmo e o sabor de um dialeto local, sem nos sujeitar às irritantes mudanças ortográficas, omissões dos plurais (os minino, os ômi) e à má gramática com que outros autores tentam transcrever a fala regional. As frases finais do parágrafo – “Eu não levaria meus filhos a parte alguma com um criminoso como esse tresmalhado por lá. Não ficaria em paz com a minha consciência se levasse” – sintetizam a qualidade cômica e enlouquecedora das manipulações da avó. Ela usará qualquer coisa, mesmo um encontro imaginário com um criminoso foragido, para desviar as férias da família da Flórida para o leste do Tennessee. E sua fantasia aparentemente improvável de encontrar o Desajustado pode nos levar a refletir sobre o egocentrismo e o narcisismo peculiares das pessoas que estão constantemente convencidas de que, por minúsculas que sejam as probabilidades, a bala perdida irá de algum modo encontrá-las. Ao mesmo tempo, novamente por conta da escolha de palavras, a frase final já está aludindo àquelas questões de consciência, moralidade, o espírito e a alma que se revelarão o cerne do conto de O’Connor.

Dado o tamanho do país, pensamos, não é possível que eles topem com o criminoso acerca do qual a avó os advertiu. Podemos lembrar, contudo, a observação de Tchekhov de que o revólver que vemos no palco numa cena inicial provavelmente terá sido detonado antes do fim da peça. Que vai acontecer então? 
Essa curta passagem já nos introduziu num mundo que é realístico, mas que ao mesmo tempo está além do alcance da lógica comum, e numa narrativa que acompanharemos, a partir desta introdução, tão inexoravelmente quanto a avó está fadada a encontrar um destino que (suspeitamos) envolverá o Desajustado. Reduzida e editada, extremamente concentrada, um modelo de compressão do qual seria difícil suprimir uma palavra, essa única passagem alcança tudo isto, ou mais, já que haverá sutilezas e complexidades adicionais óbvias apenas para cada leitor individual.

Apenas passar os olhos não basta se desejamos extrair uma fração, como a acima, do que as palavras de um escritor podem nos ensinar sobre como usar a linguagem. E ler rapidamente – voltado para a trama, para as ideias, e até para as verdades psicológicas que uma história revela – pode ser um empecilho quando as revelações cruciais estão nos espaços entre as palavras, no que foi excluído. Esse é o caso da abertura de “As filhas do falecido coronel”, de Katherine Mansfield:

A semana seguinte foi uma das mais atarefadas de suas vidas. Mesmo quando elas iam para a cama, eram apenas seus corpos que se deitavam e repousavam; suas mentes continuavam, resolvendo as coisas, reconsiderando-as, discutindo-as, duvidando, decidindo, tentando se lembrar onde…

Novamente, a história começa com uma simples frase declarativa que estabelece um sentido de competência e controle: uma história está prestes a ser contada por alguém que sabe o que está fazendo. Mas se a lermos rapidamente, podemos não notar o fato de que não sabemos a que se refere a palavra seguinte. A semana seguinte... a quê? Nossas heroínas – duas irmãs que ainda não conhecemos e que não foram nomeadas para nós (Josephine e Constantia) nem mencionadas de qualquer maneira exceto como elas – não podem fornecer as palavras necessárias, a semana seguinte ao funeral de seu pai, porque ainda não foram capazes de se convencer de que esse evento grave e aterrorizante realmente ocorreu. Elas simplesmente não conseguem pôr na cabeça que seu temido e tirânico pai, o coronel, tenha morrido e não esteja mais ditando exatamente o que deviam fazer, sentir e pensar a cada momento de cada dia.

Ao omitir a que se refere a palavra seguinte já na primeira frase, Katherine Mansfield estabelece as regras ou a falta de regras que permite ao conto adotar um ponto de vista distanciado na terceira pessoa juntamente com uma fluidez que torna possível penetrar os recessos empoeirados, peculiares das psiques das duas irmãs. A segunda e última frase desse parágrafo é toda de gerúndios – pensando, duvidando, decidindo, tentando lembrar – que descrevem pensamento e não ação, até que a frase se esgota e desaparece aos poucos numa elipse que prefigura o beco sem saída a que as tentativas das irmãs de refletir sobre as coisas finalmente chega.

Essas duas frases sóbrias já nos introduziram no reino paradoxalmente rico e claustrofóbico (tanto fora quanto dentro das irmãs) em que a história se passa. Elas nos permitem ver o mundo delas de uma perspectiva ao mesmo tempo tão objetiva e tão estreitamente identificada com essas mulheres infantis que tudo acerca de suas ações (dar risadinhas, contorcer-se em suas camas, afligir-se com o pequeno camundongo que corre pelo quarto) nos faz pensar que devem ser crianças, até que, quase na quinta página do conto, a criada, Kate, entra na sala de jantar e – em apenas duas palavras – a história nos ofusca com um áspero clarão que revela a idade das “velhas solteironas”: “E a jovem e orgulhosa Kate, a princesa encantada, entrou para ver o que as velhas solteironas queriam agora. Passou a mão em seus pratos de arremedo disto ou daquilo e pôs ruidosamente na mesa um aterrorizado manjar branco.”

(Note-se, também, a maneira engenhosa e econômica como “aterrorizado manjar branco” reflete o estado mental das “velhas solteironas” no tremor do pudim gelatinoso.)

Mansfield é um desses estilistas cuja obra podemos abrir em qualquer lugar para descobrir alguma escolha de palavra inspirada. Aqui, as irmãs ouvem um realejo lá fora na rua e, pela primeira vez, dão-se conta de que não precisam pagar o tocador para ir embora antes que a música irrite o pai. “Um perfeito repuxo de notas borbulhantes jorrou do realejo, notas redondas e luminosas, displicentemente espalhadas.” E como são precisas e inventivas as palavras com que as mulheres reagem à enfermeira do pai, que residia na casa e continuou lá depois da morte dele. As maneiras à mesa da enfermeira Andrews alarmam e enfurecem as irmãs, que de repente não têm a menor ideia de como, economicamente, devem sobreviver sem o pai.

A enfermeira Andrews era simplesmente terrível com a manteiga. Realmente não podiam deixar de sentir que com a manteiga, pelo menos, ela tirava proveito de sua generosidade. E tinha aquele hábito enlouquecedor de pedir só mais uma pontinha de pão para terminar o que restava no prato, e depois, no último bocado, distraidamente – claro que não era distraidamente –, servir-se de novo. Josephine ficava muito vermelha quando isso acontecia, e pregava seus olhinhos redondos na toalha, como se visse um minúsculo e estranho inseto rastejando através da sua trama.

Novamente, é uma questão de palavra por palavra – desta vez, de adjetivos e advérbios. Embora permaneçamos na terceira pessoa, o simplesmente terrível e o enlouquecedor são palavras das irmãs. Seria difícil não perceber a raiva e o desespero gerados por aquele “só mais uma pontinha de pão”, aquele “distraidamente – claro que não era distraidamente”. E podemos ver com absoluta nitidez o olhar de horror, concentração e repugnância reprimida no rosto de Josephine quando ela “prega seus olhinhos redondos” no “minúsculo e estranho inseto” que imagina rastejando através da trama da toalha de mesa. De passagem, trama nos informa que a toalha é de renda.

Vale a pena ler “As filhas do falecido coronel” em diferentes pontos de nossas vidas. Durante anos, supus que compreendia o conto. Acreditava que a incapacidade das irmãs de relacionar aquele seguinte com alguma coisa, de compreender a partida misteriosa do pai, tinha a ver com suas naturezas excêntricas, com sua incapacidade (ou recusa) infantil de encarar as complexidades da vida adulta. Mas calhou de eu o reler não muito tempo depois de uma morte em minha própria família, e pela primeira vez compreendi que a perplexidade das irmãs não é tão diferente do espanto e atordoamento que todos nós sentimos (por mais “adultos” ou sofisticados que nos imaginemos) em face do término chocante, da ausência, do mistério da morte.
Francise Prose, "Para ler como um escritor"

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