De acordo com al-Haytham, todas as percepções do mundo externo envolvem uma certa influência deliberada que deriva da nossa faculdade de julgar. Para desenvolver essa teoria, al-Haytham seguiu o argumento básico da teoria da intromissão de Aristóteles - segundo a qual as qualidades do que vemos entram no olho por meio do ar - e fundamentou sua escolha com explicações físicas, matemáticas e fisiológicas precisas.
Mas, de forma mais radical, al-Haytham fez uma distinção entre “sensação pura” e “percepção”, sendo a primeira inconsciente ou involuntária - ver a luz fora da minha janela e as formas cambiantes da tarde – e exigindo a segunda um ato voluntário de reconhecimento seguir um texto numa página. A importância do argumento de al-Haytham estava em identificar pela primeira vez, no ato de perceber, uma gradação da ação consciente que vai do ver ao decifrar ou ler.
Al-Haytham morreu no Cairo, em 1038. Dois séculos mais tarde, o erudito inglês Roger Bacon - tentando justificar o estudo da ótica ao papa Clemente IV numa época em que certas facções da Igreja Católica sustentavam violentamente que a pesquisa científica era contrária ao dogma cristão – ofereceu um resumo revisado da teoria al-Haytham.
Segundo al-Haytham (e, ao mesmo tempo, minimizando a importância da sabedoria islâmica), Bacon explicou a Sua Santidade a mecânica da teoria da intromissão.
Segundo Bacon, quando olhamos para um objeto (uma árvore ou as letras SOL), forma-se uma pirâmide visual que tem sua base no objeto e seu ápice no centro da curvatura da córnea. Nós “vemos” quando a pirâmide entra em nosso olho e seus raios são dispostos sobre a superfície do nosso globo ocular, refratados de tal forma que não se cruzam. Ver, para Bacon, era o processo ativo pelo qual uma imagem do objeto entrava no olho e era então apreendida pelos “poderes visuais” dele.
Mas como essa percepção se torna leitura? Como o ato de apreender letras relaciona-se com um processo que envolve não somente visão e percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento, conhecimento, experiência, prática? Al-Haytham sabia (e Bacon certamente concordava) que todos esses elementos necessários para realizar o ato de ler conferiam-lhe uma complexidade impressionante, cujo desempenho satisfatório exigia a coordenação de centenas de habilidades diferentes. E não apenas essas habilidades, mas o momento, o lugar e a plaquinha, o rolo, a página ou a tela sobre a qual o ato é realizado afetam a leitura: para o pastor sumério anônimo, a aldeia perto de onde pastoreava suas cabras e a argila arredondada; para al-Haytham, a nova sala branca da academia do Cairo e o manuscrito de Ptolomeu lido desdenhosamente; para Bacon, a cela da prisão a que fora condenado por seus ensinamentos heterodoxos e seus preciosos volumes científicos; para Leonardo, a corte do rei Francisco I, onde passou seus últimos anos, e os cadernos de anotações que mantinha em código secreto, os quais só podem ser lidos diante de um espelho. Todos esses elementos desconcertantemente diversos unem-se naquele ato único; até aí, al-Haytham presumira.
Mas o modo como tudo acontecia, que conexões intrincadas e fabulosas esses elementos estabeleciam entre eles, essa era uma questão que, para al-Haytham e seus leitores, permanecia sem resposta.
Os estudos modernos de neurolinguística, a relação entre cérebro e linguagem, começaram quase oito séculos e meio depois de al-Haythan, em 1865. Naquele ano, dois cientistas franceses, Michel Dax e Paul Brocat sugeriram em estudos simultâneos, mas separados, que a grande maioria da humanidade, em consequência de um processo genético que começa na concepção, nasce com um hemisfério cerebral esquerdo que se tornará a parte dominante do cérebro para codificar e decodificar a linguagem; uma proporção muito menor, em sua maioria canhotos ou ambidestros, desenvolve essa função no hemisfério direito. Em uns poucos casos (pessoas predispostas geneticamente a um hemisfério esquerdo dominante), danos precoces ao hemisfério esquerdo resultam numa reprogramação cerebral e levam ao desenvolvimento da função da linguagem no hemisfério direito. Mas nenhum dos hemisférios atuará como codificador e decodificador enquanto a pessoa não for exposta efetivamente à linguagem.
No momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever e ler que ainda estavam no futuro.
Ou seja, o corpo era capaz de armazenar, recordar e decifrar todos os tipos de sensação, inclusive os sinais arbitrários da linguagem escrita ainda por ser inventados. Essa noção de que somos capazes de ler antes de ler de fato - na verdade, antes mesmo de vermos uma página aberta diante de nós - leva-nos de volta à ideia platônica do conhecimento preexistente dentro de nós antes de a coisa ser percebida. A própria fala desenvolve-se seguindo um padrão semelhante. “Descobrimos” uma palavra porque o objeto ou ideia que ela representa já está em nossa mente, pronto para ser ligado à palavra. É como se nos fosse oferecido um presente do mundo externo (por nossos antepassados, por aqueles que primeiro falam conosco), mas a capacidade de apreender o presente é nossa. Nesse sentido, as palavras ditas (e, mais tarde, as palavras lidas) não pertencem a nós nem aos nossos pais, aos nossos autores: elas ocupam um espaço de significado compartilhado, um limiar comum que está no começo da nossa relação com as artes da conversação e da leitura.
Alberto Manguel, "Uma história da leitura"
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